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Corporalidade e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero na margem

Revista Estudos Feministas
Rev. Estud. Fem. vol.10 no.1 Florianópolis Jan. 2002

Corporalidade e desejo: Tudo sobre minha mãe e o gênero na margem

SÔNIA WEIDNER MALUF
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo: Análise do filme Tudo sobre minha mãe, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, enfocando a personagem travesti Agrado. Depois de uma comparação com outros filmes que abordam o fenômeno transgênero, é feita uma discussão em torno da noção de corporalidade e da construção do sujeito, dialogando sobretudo com as teorias do corpo da etnologia ameríndia brasileira. O ensaio busca propor alguns elementos para uma reflexão sobre a importância da análise de experiências de margem na renovação teórica no campo dos estudos feministas e de gênero. A experiência corporificada de 'tornar-se outro' dramatiza os mecanismos de construção da diferença e se apresenta como um empreendimento anti-hierárquico desestabilizador de políticas dominantes da subjetividade.

Palavras-chave: cinema, corpo, transgênero.

Em seu último filme, Tudo sobre minha mãe, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar mais uma vez faz uma elegia às margens.1 Ele mostra, como em quase toda sua filmografia, como as experiências de margem podem ser ao mesmo tempo reveladoras e transgressoras dos mecanismos de poder naturalizados nas ideologias e nos modos de vida dominantes nas sociedades urbanas ocidentais contemporâneas. No filme, desejo e sofrimento se cruzam e constroem uma trama que aos poucos vai dissolvendo alguns princípios estabelecidos sobre corpo, gênero e identidade.

Manuela, uma enfermeira que trabalha no setor de doação de órgãos de um hospital de Madrid, perde seu único filho em um acidente, no dia em que ele faz 18 anos. Caindo em uma profunda depressão, resolve então fazer a viagem de volta a Barcelona, cidade de onde partira grávida. Lá ela reencontra Agrado, travesti que se prostitui na zona de meretrício da cidade, e tenta recomeçar a vida sem o filho. Ela conhece Irmã Rosa, freira que faz um trabalho assistencial com travestis e prostitutas e que se descobre portadora do HIV e grávida de um travesti. Manuela também entra em contato com Huma, atriz de teatro de quem seu filho era um fã ardoroso e que está ligada à sua morte: ele morreu no dia de seu aniversário ao ser atropelado quando tentava conseguir um autógrafo de Huma na saída do teatro. Huma encena a peça Um bonde chamado desejo e vive um drama amoroso com sua parceira de palco e amante, viciada em drogas. É também em Barcelona que Manuela vai reencontrar o pai de seu filho, outro travesti, já doente e cansado. Na trama, Almodóvar brinca o tempo todo com as expectativas do público e com as margens: um marido que coloca um par de seios, uma esposa que permanece com esse marido de tetas, um pai travesti, uma freira que engravida desse mesmo travesti. Mas o que mais surpreende é a naturalidade com que o escândalo e a transgressão aparecem e vão se tornando eles próprios objetos de atração e, por que não, de identificação dos espectadores.

São muitas as leituras possíveis de Tudo sobre minha mãe. A minha será limitada a uma das personagens, Agrado, e a alguns aspectos que me parecem trazer elementos para uma discussão sobre gênero e corporalidade. São eles: a questão do ocultamento do corpo e de uma corporalidade pública, a relação entre desejo e natureza ou a natureza do desejo e o gênero nas margens.

Corpos ocultos x corporalidades públicas

Agrado, a principal personagem travesti do filme, gosta de falar de seu corpo. "Tudo o que tenho de verdadeiro são meus sentimentos e os litros de silicone que me pesam toneladas." Quando ocupa o palco para substituir uma peça de teatro que não pôde ser apresentada pela ausência das duas atrizes, ela diverte, fascina e seduz homens e mulheres da platéia contando sua história de vida ¾ na verdade uma fala sobre seu corpo. Brinca, calculando quanto vale pela quantidade de silicone aplicado nos seios, na bunda e em outras partes do corpo, e pelas cirurgias pelas quais passou:

Cancelaram o espetáculo. Aos que quiserem será devolvido o ingresso. Mas aos que não tiverem o que fazer e já estando no teatro, é uma pena saírem. Se ficarem, eu irei diverti-los com a história de minha vida. Adeus, sinto muito [aos que estão saindo]. Se ficarem aborrecidos, ronquem, assim RRRRR. Entenderei, sem ter meus sentimentos feridos. Sinceramente. Me chamam Agrado, porque toda a minha vida sempre tento agradar aos outros. Além de agradável, sou muito autêntica. Vejam que corpo. Feito à perfeição. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Um desperdício, porque numa briga fiquei assim [mostra o desvio no nariz]. Sei que me dá personalidade, mas, se tivesse sabido, não teria mexido em nada. Continuando. Seios: dois, porque não sou nenhum monstro. Setenta mil cada, mas já estão amortizados. Silicone... ¾ Onde? [Grita um homem da platéia]. Lábios, testa, nas maçãs do rosto, quadris e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocês, pois eu perdi a conta. Redução de mandíbula, 75 mil. Depilação completa a laser, porque a mulher também veio do macaco, tanto ou mais que o homem. Sessenta mil por sessão. Depende dos pêlos de cada um. Em geral duas a quatro sessões. Mas se você for uma diva flamenca, vai precisar de mais. Como eu estava dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas, não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma.

Homens e mulheres que trabalham nos bastidores do teatro estão fascinados por seu pênis. Uma das atrizes pede para vê-lo, enquanto acaricia seus seios. Um dos atores pede que ela lhe faça um boquete. Ela fica indignada e responde ao assédio: "Toda a companhia está obcecada com o meu pau. Como se fosse o único... Na rua lhe pedem para chupar só porque você tem pau?". Mas ela acaba cedendo, só para mostrar como é uma pessoa aberta e sensível para essas coisas.

Paula Marino analisou filmes já clássicos que tratam do tema do travestismo.2 Entre eles, Gaiola das loucas (Mike Nichols, 1995), Madame Doubtfire (Chris Columbus, 1993), Yentl (Barbra Streisand, 1983), Victor ou Vitória (Blake Edwards, 1982) e Tootsie (Sidney Pollack, 1982). Ela caracteriza como um dos elementos comuns centrais desses filmes o ocultamento da 'identidade' do personagem travestido e um "dosamento do conhecimento sobre a verdadeira identidade".3 Haveria uma preocupação em ocultar "os traços e as formas do corpo que poderiam delatá-lo como membro de outro sexo".4 Um filme recente que poderia se colocar nessa linhagem do ocultamento é Meninos não choram (de Kimberli Pierce, 1999), baseado em uma história real ocorrida em uma cidadezinha do sul dos Estados Unidos. O filme é a história de uma jovem que se traveste de rapaz, anda com rapazes e namora outras jovens. A descoberta de sua 'verdadeira identidade' (que acontece, evidentemente, quando o corpo é descoberto, no sentido literal ¾ quando a roupa lhe é tirada) tem um desfecho trágico: em uma cena de grande violência, ela é estuprada pelos dois amigos. O resto fica para quem for ver o filme.

Tudo sobre minha mãe vai um pouco na contramão desses filmes que têm como tema a tensão entre ocultamento e descoberta (e que se fundamentam em outra tensão: ou se é homem ou se é mulher, e a prova dos nove é o corpo anatômico, substantivo, objetificado). Ao contrário de grande parte desses personagens travestis clássicos, a principal personagem travesti de Tudo sobre minha mãe, Agrado, não busca o ocultamento. Ela não faz de conta que é mulher e que sempre foi. Sua afirmação pública é feita pela exibição de seu corpo exatamente pelo que ele é: um corpo transformado, fabricado, que aparece e se afirma como corpo fabricado, não um corpo substantivo, objetificado, mas corporalidade, veículo e sentido da experiência. A autenticidade desse corpo, segundo o próprio discurso de Agrado, sua 'natureza' estaria no processo que o fabricou. Ao dizer que o que tem de mais autêntico é o silicone, Agrado está revelando que o 'autêntico' nela é justamente produto de sua criação, da intervenção de seu desejo, de uma agência própria.

Quando ocupa o palco, ela também se apresenta como uma travesti diferente das outras. Ela migra do mundo subterrâneo da zona de prostituição de Barcelona para o palco ¾ espaço próprio, no universo da transexualidade, a outro tipo de experiência transgênero: as drag queens e seus afins.5 Agrado, aliás, odeia as drag queens: "As drags estão nos liquidando. Não suporto as drags, são umas nojentas. Confundiram travestismo com circo. Um horror". Nesse momento, ela também define o que é uma mulher: "Seu cabelo, sua unha, lábios para chupar e uma boca para criticar".

Tematizando dessa maneira o travestismo, Tudo sobre minha mãe segue uma outra linhagem, a de filmes como Priscila, a rainha do deserto, ou mesmo um filme como O ano das treze luas, de Rainer Fassbinder, que conta a história de um transexual que, antes de fazer a cirurgia, havia sido casado com uma mulher e tem uma filha. Uma linhagem de filmes sobre as transgressões das fronteiras de gênero marcada não pelo desejo de aparência (parecer ser o oposto do que não se quer ser), mas pelo desejo de 'aparecência' (desejo de aparecer), desejo de evidência de uma corporalidade construída.

Também ao contrário dos filmes de ocultamento, o travestismo de Agrado não tem um final. Não há um desvendamento, porque não há nada para ser desvendado. Não existe identidade oculta, motivada por circunstâncias externas ao sujeito (conquistar um determinado emprego, construir uma carreira, etc.). Agrado não se transforma para ocultar uma identidade anterior e autêntica e mostrar outra, falsa mas que finge ser verdadeira. Quando lhe é dado o palco, ela apresenta o caráter fabricado de seu corpo. Ao romper com a oposição entre o falso e o verdadeiro, ela também rompe com outra oposição essencialista: natureza e antinatureza.6

Desejo como natureza

É a partir das transformações feitas em seu corpo, e principalmente da fala sobre esse corpo, que só ganha existência enquanto corpo do qual se fala, que Agrado aparece como sujeito.

A ironia de Agrado sobre sua autenticidade depositada no silicone cumpre a mesma função da parábola que acompanha todo o filme Traídos pelo desejo, do irlandês Neil Jordan. Esse filme conta a história de um ex-militante do Exército Republicano Irlandês que se apaixona pela namorada de um soldado americano que foi refém dessa organização e acabou morrendo em uma tentativa de fuga de seu cativeiro. O detalhe é que a namorada, "paradigma perfeito da feminilidade", como escreve Maria Rita Kehl a propósito do filme,7 é um travesti. Durante o filme uma parábola é contada em diferentes momentos pelos dois protagonistas masculinos. A história de um escorpião que quer atravessar um rio e pede para a rã carregá-lo. A rã, desconfiada de que o escorpião possa atacá-la, inicialmente não aceita. Mas o escorpião dá sua palavra de que jamais a atacaria, até porque ele iria se afogar junto com a rã. Acontece que, no meio do trajeto, a rã sente a picada e, desesperada, pergunta ao escorpião porque ele tinha feito isso se ele também morreria junto com ela. O escorpião responde: é a minha natureza. Como analisa Maria Rita Kehl nesse artigo, ao falar de uma natureza incontornável, contra a qual nada se pode fazer, os dois amantes de Traídos pelo desejo não estão falando de uma natureza anatômica, mas daquela que diz respeito ao saber e ao desejo. No caso de Dil, 'saber-se mulher'. No caso de Agrado, em minha leitura, 'saber-se travesti'. A natureza não está no corpo, mas no desejo, para Dil, ou no desejo inscrito no corpo, o silicone, para Agrado.

Mais que o território dado a priori onde operaria a transformação, o corpo transformado apresenta-se como o espaço de reterritorialização desses sujeitos da margem. Por um lado, realiza-se algo que é da ordem de um desejo que parece dado previamente (ser o mais próximo do que se sonhou para si mesma, como diz Agrado). Por outro lado, o processo de transformação, de tornar-se outro, é o que constitui, o que dá corporalidade a esse desejo e ao sujeito desse desejo. O corpo é, nessa experiência, desejo e objeto ao mesmo tempo. Ele deixa de ser uma substância previamente dada (o reino da natureza), em cima da qual irá se inscrever o que é da ordem da cultura. Ele se apresenta como corporalidade ou corporificação, ou seja, enquanto experiência que reúne afetos, afeições, habitus, como coloca Thomas Csordas em sua discussão sobre o embodiment.8

No caso de Agrado ¾ e de outros transformistas ¾ e de sua fala sobre si mesma (que é necessariamente uma fala sobre sua experiência corporificada), o corpo só existe enquanto experiência. O que seria o objeto ou a substância definidora de identidade (o corpo irredutível) aparece deslocado em sua fala, mas os sujeitos que convivem com ela insistem nele. Eles querem ver o seu pênis. O silicone, que para esses sujeitos seria o objeto efetivamente deslocado, aparece na fala de Agrado como a sua natureza, o que de mais autêntico ela possui. Ela começa a fala dizendo que irá contar a história de sua vida. E essa história é contada através de seu corpo, ou melhor, de sua experiência corporificada. O travesti institui uma nova bildung: a bildung do corpo ¾ através dele e nele se constrói uma nova pessoa.


O gênero nas margens

A forma como Almodóvar tematiza no filme questões como corpo e gênero nos aporta elementos para repensar esses conceitos a partir da experiência de margem que é o fenômeno transgênero.

A experiência transgênero é um dos temas que têm possibilitado uma renovação das reflexões, dos conceitos e da própria teoria dentro do campo de estudos feministas e de gênero. Isso porque ¾ em suas diferentes formas de manifestação ¾ ela tem revelado aspectos do gênero que durante muito tempo ficaram relegados ou à sua construção teórica ou à perspectiva comparativa com culturas outras. Justamente os aspectos que mais sobressaem na reflexão sobre a experiência transgender estão ligados ao caráter artificial e fabricado do gênero e das diferenças de gênero, ou seja, de sua fabricação cultural, social e política.9

É também a experiência da margem que tem possibilitado uma reflexão sobre o conceito de corpo para além do anatômico. Penso que pode ser particularmente fértil o diálogo entre a reflexão sobre essas formas 'não canônicas' do gênero nas sociedades ocidentais modernas com estudos antropológicos sobre as noções de corpo em outras culturas; o confronto de experiências culturais e cosmologias que considero de margem com formas culturais e cosmológicas que veiculem outras teorias do gênero e do corpo (para além do dualismo essencialista10 da diferença anatômica). É o que vou tentar fazer de forma bastante ensaística nesta segunda parte do artigo.

Há uma outra parábola que se tornou famosa na antropologia. No final de suas pesquisas entre os canaques, na Melanésia, entre os anos 1920 e 1930, o missionário protestante e antropólogo Maurice Leenhardt comenta com o chefe do grupo que o longo convívio com os missionários ocidentais havia ensinado aos canaques que eles teriam uma alma. O chefe contesta o missionário: "Não, que nós temos uma alma nós já sabíamos, vocês nos ensinaram que nós temos um corpo".11 Até a chegada dos missionários e dos outros ocidentais, os canaques não possuíam palavra para corpo.12 Foi aprendendo com os missionários ocidentais a noção de que eles tinham um corpo, singular, único e delimitado (com fronteiras ¾ ou seja, margens ¾ definidas), que se abre um caminho para o que Leenhardt chamou processo de individuação. É quando os canaques percebem que têm um corpo que se abre a possibilidade de individuação, de fixação de um 'eu' (eu tenho um corpo). É nesse momento, segundo Leenhardt, que eles têm a possibilidade de se liberar da rede de relações da velha sociedade melanésia, a qual a pessoa se submete e onde ela não é nada além de um lugar relacional, previamente inscrito no social.

Independentemente do fato positivo ou negativo do processo de individuação do povo canaque, a parábola contada por Leenhardt nos traz um elemento interessante para a discussão do fenômeno transgênero e do próprio conceito de gênero. Nem todas as culturas têm um conceito para corpo. Ou seja, não só o corpo e os corpos são construções culturais,13 como também o próprio conceito de corpo é uma construção cultural e histórica. Essas ponderações interessam porque, nas concepções hegemônicas nas culturas modernas, o corpo aparece como a nossa natureza. E muitas vezes, mesmo nas discussões no interior no campo de estudos de gênero, o corpo vai aparecer como o fator ou o termo irredutível.

A irredutibilidade do corpo nos leva a pensar no sexo como objeto (pênis ou vagina). É disso que fala a frustração de Teena Brandon, em Meninos não choram, transformada em Brandon Teena, mas que nunca será totalmente Brandon, já que, segundo Paulo César de Souza,14 "a medicina não é capaz de produzir ou transplantar um pênis que funcione". Sublinho o "que funcione" (leia-se: erguer, penetrar). Ter um pênis não deixa de ser o sonho de Brandon/Teena.

É interessante pensar, ainda, no corpo travesti a partir da noção de individualização. Não exatamente individuação, como a discutida por Leenhardt ao pensar a sociedade canaque: o estabelecimento de contornos de um ser singular, original, diferente dos outros, e com direito a um nome próprio. A individualização do sujeito travesti, expressa na fala de Agrado, acontece no sentido de realização de um desejo próprio e da inscrição desse desejo em um corpo, leia-se transfiguração desse desejo em corporalidade. O desejo travesti é o de tornar-se outro, mas o que Agrado assinala em seu discurso é mais o processo de tornar-se do que o produto final da mudança. Ao apontar para o silicone (e não para o seio simplesmente), ela aponta para o processo, para o movimento inscrito nesse corpo.

Para Maria Rita Kehl, citando um artigo de Arnaldo Jabor, o travesti seria a mulher mais que perfeita (ela representa o ideal do desejo masculino). Em Agrado as coisas se colocam em outros termos: seu silicone é o desejo mais que perfeito, sua 'verdadeira natureza' está aí expressa. O silicone representa o processo, a agência, a ação do sujeito sobre o que é visto como estruturalmente dado.

Uma outra questão que caberia comentar está relacionada ao fato de que a maior parte ou pelo menos a parte mais visível dessa transformabilidade de gênero nas culturas urbanas contemporâneas acontece no sentido masculino¾feminino. Diversos significados já foram dados a essa constatação e eu gostaria de trazer outros elementos. O que está em questão aqui é o processo de 'tornar-se o outro'. Uso artigo 'o' pensando nesse caráter dualista dado à categoria de gênero: ou se é um ou se é outro (no máximo pode-se tentar unificar os termos: um e o outro, como propôs Elisabeth Badinter; mas o dualismo permanece, ao menos no plano metafísico). Aqui mais uma vez a comparação com outras formas culturais e cosmológicas ¾ particularmente as sociedades ameríndias sul-americanas ¾ parece que tem algum rendimento.

O fenômeno do transformismo lembra os recentes estudos sobre o perspectivismo ameríndio, baseado na transformabilidade sem fim presente nas cosmologias das sociedades indígenas brasileiras.15 Nessas culturas, tudo potencialmente pode se transformar em tudo (espíritos em seres humanos, seres humanos em animais, animais em seres humanos, etc.). Segundo essas cosmologias, as coisas não são o que parecem, ou seja, os corpos são roupas que podem ser vestidas, despidas e substituídas por outras roupas (outros corpos).16 Ainda segundo esse pensamento, mesmo admitindo as nuances interpretativas em relação ao peso relativo ou absoluto dessa oposição, as metamorfoses sempre se dariam em torno da polaridade presa¾predador, em que o destino da presa (ao ser predada) é o de tornar-se o predador (a alma do porco caçado pelos juruna irá viver entre as almas dos juruna; o juruna morto durante uma caçada aos porcos tornar-se-á um porco).17 Ser presa significa ser englobada pelo predador ¾ e é na posição de predador que se encontra a posição do sujeito. No caso do perspectivismo ameríndio, presa e predador não são posições fixas, mas posicionalidades contingenciais e mutáveis; são categorias perspectivas, assim como as de humano, animal e alma. O que define a humanidade ¾ e nesse sentido a posição de sujeito ¾ é o ponto de vista.

Presa e predador poderiam ser substituídos pelos termos 'englobado' e 'englobante', na medida em que é um dualismo hierárquico em que sempre um dos termos acabará englobando o outro ¾ no caso da cultura de gênero, o termo 'englobante' invariavelmente tem sido o masculino.18 Guardando as diferenças, e dando um sentido heurístico a essa imagem presa¾predador, poderíamos pensar que, nas sociedades ocidentais modernas, o masculino está no lugar do predador e o feminino no lugar da presa. Em uma cultura dualista, que pensa hegemonicamente o gênero a partir de pólos opostos, o masculino é o universal, o feminino o particular. O masculino é a ausência do gênero (o englobamento da diferença no sujeito universal); o feminino é o gênero (o termo que marca a diferença, onde a particularidade aparece).

Elsje Lagrou, analisando o caso dos kaxinauá (grupo pano da Amazônia), uma cultura extremamente dualista, pondera que o dualismo kaxinauá e de outros grupos pano não é um dualismo essencialista, cujos termos seriam fixos e previamente determinados.19 Mas trata-se do que ela chama de "dualismo topográfico", ou seja, os termos estão ligados a uma determinada posicionalidade contingencial e nunca são simétricos, mas sempre hierarquizados. Porém, ela questiona a idéia de o sujeito sempre se encontrar na posição do predador. Ela percebe entre os kaxinauá uma outra oposição fundante no dualismo do grupo, a oposição entre eu e o outro (nós e o inimigo) ¾ sendo que "ambas as posições possuem a qualidade da agência e da subjetividade".20 A alteridade não significa falta de humanidade ou de sujetividade, mas "ininteligibilidade e diferentes modos de perceber e olhar as coisas, implicando o relacional e nunca o essencial e o substancial".21 Perceber o ponto de vista do outro não é perder, assim, a posição de sujeito.

Comparativamente, no fenômeno transgênero há uma inversão da dinâmica da relação predador¾presa: o 'predador' se torna 'presa'. Aquele que estruturalmente se encontra na posição de sujeito busca se construir contingencialmente como sujeito, não mais na posição estruturalmente fixada, mas na experiência instável da transformação ¾ do devir como movimento sem fixação final. Não são os peitos femininos de Agrado o que ela tem de mais autêntico, mas a experiência vivida da metamorfose, inscrita naqueles seios, a subjetividade corporificada que se constrói nesse movimento em direção ao outro.22 Ao se colocar no ponto de vista daquele estrutural e politicamente colocado como outro, como não-sujeito, o transformista desloca a posição do sujeito de um lugar estruturalmente fixado. A experiência corporificada de 'tornar-se outro', ao mesmo tempo que dramatiza os mecanismos de construção da diferença, não deixa de ser um empreendimento anti-hierárquico que desestabiliza as políticas dominantes da subjetividade. Pensar essas experiências de margem talvez nos ajude a repensar o conceito de gênero, seus limites e potencialidades, tanto no campo analítico quanto no político.


Referências bibliográficas

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1 Trabalho apresentado na mesa-redonda "Corpo, cultura e textualidade", no Seminário Internacional Fazendo Gênero 4, Florianópolis, UFSC, maio de 2000, e no 4º Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema (Socine), Florianópolis, 2000. Gostaria de agradecer aos meus alunos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia pelas contribuições direta ou indiretamente dadas a este artigo e a Vanessa Pedro pela leitura atenta e pelas sugestões.
2 MARINO, 1997. Agradeço a Anna Paula Vencato a referência a esse artigo.
3 MARINO, 1997, p. 2.
4 MARINO, 1997, p. 2.
5 Sobre as diferentes formas de transformismo e sua relação com o espaço público, ver Sônia MALUF, 1999.
6 As implicações políticas de pensar o corpo como corporalidade, processo, experiência ou being-in-the-world são muitas. Uma questão que surgiu em uma discussão com meus alunos em torno do texto de Thomas CSORDAS (1994) diz respeito ao conceito de corpo essencializado presente em diferentes formas de violência e de extermínio étnico, sexual, etc. Em Meninos não choram, é através do estupro que os dois rapazes, em uma cena de violência homofóbica, reduzem a personagem a sua condição última ¾ aquela marcada pelo corpo essencializado ¾, à condição de mulher. O corpo do judeu aniquilado no nazismo seria um corpo essencializado. O judeu seria reduzido a seu corpo físico, anatômico e aniquilado através da destruição desse corpo. (Devo a Rogério Azize essa imagem do corpo do judeu persguido como um corpo essencializado.)
7 KEHL, 1996.
8 Para uma discussão do corpo como embodiment, ver CSORDAS, 1994. Utilizo os termos "corporalidade" e "corporificação" por entender que eles dão conta da discussão proposta por Csordas, não sendo necessários neologismos (encorporação) nem deslocamentos de significados de outras palavras, como "incorporação". Para uma discussão do conceito de corporalidade, ver ainda Anthony SEEGER, Roberto DA MATTA E Eduardo VIVEIROS DE CASTRO, 1979.
9 Não há nenhuma novidade nessa afirmação da experiência transgênero como reveladora da instabilidade do gênero ¾ e do próprio conceito. Esther Newton (apud Judith BUTLER, 1990) tenta mostrar a 'dupla inversão' da drag, que, ao mesmo tempo em que afirma uma aparência 'exterior' feminina e uma essência 'interna' masculina, também simboliza o oposto: uma aparência externa masculina (o corpo) e uma essência feminina (seu eu). Para BUTLER (1990), ao "imitar [o/um] gênero, a drag revela a estrutura imitativa do gênero ¾ assim como sua contingência" (p.175).
10 O que não significa que todo dualismo seja essencialista. Estou me referindo à não-problematização do conceito de corpo, ainda reduzido, em muitos trabalhos acadêmicos no campo dos estudos de gênero, a simples substrato dado a partir do qual se simbolizariam as diferenças, estas também dadas.
11 LEENHARDT, 1947, p. 263.
12 CSORDAS (1994) cita essa passagem de Leenhardt como antecipadora de questões que só mais recentemente têm sido trabalhadas pela antropologia.
13 Marcel MAUSS (1974 [1936]) antecipa essa problemática da relação entre corpo e cultura em sua discussão sobre as "técnicas corporais".
14 Ver SOUZA, 2000.
15 Para essa discussão, inspirei-me nos artigos de Tânia LIMA, 1996, e de VIVEIROS DE CASTRO, 1996, e na tese de doutorado de Elsje LAGROU, 1998.
16 Ou mais precisamente, "as roupas são corpos" (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 133), para evitar cair no tema da aparência e da essência. Como pondera o autor, a questão não é de "tomar a 'aparência corporal' como inerte e falsa, a 'essência' espiritual como ativa e verdadeira" (idem).
17 Essa abordagem da centralidade da relação presa¾predador é particularmente abordada por Tânia S. Lima em sua análise dos juruna, um povo tupi do Xingu.
18 Uma reflexão fundamentada no dualismo hierárquico dumonsiano englobante¾englobado na análise do gênero é feita por Monika MOISSEFF, 1987, e Maria Luiza HEILBORN, 1993 e 1998.
19 LAGROU, 1998.
20 LAGROU, 1998, p. 39.
21 LAGROU, 1998, p. 39.
22 Joel BIRMAN (2000) também aborda essa 'dimensão alteritária' presente no filme de Almodóvar, no seu caso tomada do ponto de vista das relações de fraternidade estabelecidas pelas e entre as personagens femininas do filme.



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Dossiê Beleza

No. 78 - 10/07/2006

Beleza


Reportagens: A estética da bossa nova, A sonhada beleza virtual, Diferentes modos de ser belo, Diversidade garante expansão do mercado, Os oblíquos caminhos do belo
Artigos: Carlos Augusto Peixoto Junior, Ilana Strozenberg, Joana V. Novaes e Junia de Vilhena, M. Cecilia Loschiavo, Márcio Seligmann-Silva, Taisa Helena P. Palhares


Entrevista: Denise Bernuzzi Sant´Anna

Resenha: Arte e beleza na estética medieval

Editorial: A propósito do belo e da beleza

Por Carlos Vogt


Robert Blanché (1898-1975), que foi professor na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Toulousse, França, deixou uma obra importante dedicada à filosofia das ciências, à lógica, e ao seu papel fundamental para a organização do pensamento e a estruturação dos conceitos nas diversas formas do conhecimento tecidas nas relações do homem com o mundo, em sociedade, isto é, do homem com o homem nos palcos dos mundos que o seu conhecimento vai construindo, para suas apresentações e representações, ao longo da história.


Blanché tem as qualidades da clareza e da objetividade, além de um sentido didático de exposição que torna os seus livros, nos diversos temas abordados, obras de referência indispensáveis, em particular no que diz respeito às relações da lógica com as ciências, as humanidades, a epistemologia e a filosofia.


Foi por sua Introduction à la logique contemporaine (1968) que nela ingressei e foi em seu Structures intellectuelles (1969) que aprendi a admirar, definitivamente, o seu esforço bem sucedido de organização lógica das formas de apreensão e de entendimento racional e emocional do homem diante de si mesmo, do outro, da natureza, do mundo, de seus iguais e dessemelhantes.

O belo é uma categoria estética, da mesma forma que, seguindo a divisão aristotélica das três classes proposicionais, o verdadeiro é uma categoria alética e o bom, uma categoria ética.


Blanché, também nesse caso, publicou um pequeno grande livro, feito do mesmo tipo de esforço intelectual e com resultados de transparente clareza e clara elucidação: Des catégories esthétiques (Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1979, 1ª ed., 1955).


Como o tema deste número da ComCiência vem dedicado ao tema da Beleza, que se faz do belo que, por sua vez, constitui, tradicionalmente, a categoria estética por definição, pensei em traduzir, aqui neste espaço de interlocução com o leitor, o primeiro capítulo do livro de Blanché dedicado a aprender e a conformar.



A noção de categoria estética.


Belo, bonito, sublime, gracioso, pitoresco, trágico, etc.: essas qualificações que funcionam como predicados em nossos julgamentos estéticos são, sob sua forma substantiva (o belo, o bonito, etc.) aquilo que hoje se convencionou chamar as categorias estéticas.


Antes de tomar o sentido amplo e bastante vago, que ocorre na linguagem usual, como um sinônimo aproximativo de classe, conjunto, grupo, divisão (mercadorias da mesma categoria, a categoria Junior, etc.), a palavra categoria havia sido introduzida no vocabulário filosófico por Aristóteles, com um sentido mais técnico. Formada do verbo catégoreïn, que significa afirmar ou, mais precisamente, atribuir; designava as diferentes maneiras nas quais se podia fazer uma afirmação, isto é, a atribuição de um predicado a um sujeito: conforme a qualidade, conforme a quantidade, conforme o tempo, conforme a relação, etc. Aristóteles, no entanto, ainda que a palavra poïeïn, que significa fazer, figurasse entre suas categorias, não entrecruzou a sua lista de dez categorias com sua divisão ternária das atividades humanas: saber, agir e fazer; por isso eram suscetíveis de entrar numa mesma categoria de predicados relacionando-se com a ciência, com a ética e com a estética.


De fato, os julgamentos a que se atinha Aristóteles eram principalmente aqueles pelos quais exprimimos nosso conhecimento das coisas, aqueles a que, em seguida, chamamos “julgamentos de realidade”, para distinguí-los dos “julgamentos de valor”. Estes julgamentos de avaliação funcionam numa outra dimensão diferente da dos julgamentos de conhecimento. Se levarmos adiante a análise em termos de precisão, seremos levados a uma nova divisão das categorias, que poderia recortar a precedente. Reconheceríamos duas espécies fundamentais, que poderíamos chamar ontológicas ou constativas e axiológicas ou apreciativas. Voltaríamos, assim, para cada uma das espécies, à divisão aristotélica em três classes, conforme o atributo da proposição se relacione com o verdadeiro, com o bom, ou com o belo: categorias aléticas, categorias éticas, categorias estéticas. O belo seria assim a categoria fundamental da estética.


Verdadeiramente, até uma época relativamente recente, não havia ainda se estabelecido o uso de chamar a beleza uma categoria. Mas, na falta do nome, tinha-se, contudo, a idéia. Que o belo fosse visto como uma categoria estética, ou antes, como a categoria estética por excelência, é o que atesta suficientemente a definição tradicional da estética como <>. Definição tenaz que se encontra ainda neste século no Vocabulário de la philosophie de Lalande e no Dictionnaire analogique de Robert. Mas quando a palavra categoria entra explicitamente no vocabulário da estética1, é precisamente para rejeitar, ou como muito vaga, ou como muito limitada - conforme o sentido que se dê à palavra belo - definição da estética como ciência do belo. Não é porque algo tenha valor estético que seja necessariamente belo, podendo muitas vezes e mais justamente ser qualificado, conforme o caso, como bonito, gracioso, sublime, etc.

É preciso, portanto, dissociar as duas idéias de beleza e de valor estético, olhar o belo como uma categoria a ser posta no mesmo plano que as outras qualificações estéticas possíveis, renunciando, assim, à definição tradicional da estética como ciência do belo. Com efeito, ela equivale a definir o gênero por somente uma de suas espécies - a menos que compreendamos a palavra no seu sentido mais amplo e também mais vago, mas privando o esteta da palavra própria e relativamente precisa de que ele necessita para designar uma das grandes categorias que constituem o objeto de seu estudo.

Efetivamente, na falta da palavra e da noção por ela recoberta, a idéia já aparecia na estética tradicional. Primeiro, sob uma forma tímida, no sentido de que não se podia, evidentemente, desconhecer a pluralidade das qualificações estéticas. Contornava-se o problema vendo nessas diversas qualificações especificações da qualificação estética mais geral, tomada também como a qualificação estética por excelência: a do belo. Exprimia-se essa idéia falando das <> do belo, ou ainda de suas <>. O belo, valor estético supremo, caracterizando-se por um equilíbrio perfeito entre seus elementos constitutivos, acontecia que esse difícil e frágil equilíbrio, garantido pela satisfação que dava intuitivamente à razão, fosse rompido em detrimento desse elemento racional, em benefício ou do deleite sensorial, ou de sua componente emocional. Instalava-se, de algum modo, a beleza, sob sua forma mais pura, em uma região média, flanqueando-a de todos os lado com formas mais ou menos degeneradas, ficando o bonito e o gracioso do lado sensorial e o sublime ou o trágico do lado emocional.

Alguns autores haviam ido mais longe, com a percepção de uma originalidade natural de tal ou tal qualificação estética, o que poderia colocá-la em contraste franco com a do belo. A orientação ia para uma espécie de dualismo estético que, pela multiplicação de tais oposições, chegava, na seqüência, a um pluralismo. O caso mais característico é sem dúvida o do sublime, para o qual um dos traços essenciais é a intervenção de sentimentos de ordem moral. Sem que remontemos até ao Traité du sublime atribuído a Longin (século III), essa noção havia começado, no século XVIII, a ser distinguida expressamente da noção de belo, e a ser posta em paralelo, melhor dizendo, em oposição com ela2. Essa dualidade tornou-se clássica com a Critique du jugement, de Kant (1790), cuja primeira parte analisa, em dois livros distintos e com o propósito claro de diferenciá-los, o belo e o sublime. Pela mesma época, a graça havia sido igualmente objeto de análises diretas, algumas vezes em ligação com noções mais especificamente morais3. No século XVIII ainda, o pitoresco, que, como a palavra indica, designa originalmente o que é suscetível de produzir um efeito feliz em um quadro, conhece uma grande voga, sobretudo na Inglaterra4, onde logo termina por tomar, notadamente com R. Price, um sentido mais amplo, estendendo-se ao conjunto das artes como sendo uma de suas qualificações possíveis a ser claramente distinguida da noção de belo. Um pouco mais tarde, com o romantismo alemão, novas qualificações passam ao primeiro plano, opondo-se expressamente à do belo clássico, em particular a do maravilhoso. Lembremos, enfim, que as reflexões sobre a arte dramática, que balizam toda a história da literatura, também não avançam sem comportar algumas repercussões sobre a essência do cômico e do trágico.


Entretanto, enquanto a palavra técnica não é encontrada para designar o que têm em comum qualificações diversas, a idéia de categoria estética não consegue aparecer claramente. As obras de estética continuam a se apresentar como tratados do belo, com freqüência nos títulos5, e quase que exclusivamente nos seus desenvolvimentos. Os problemas que apresentam são aqueles das relações da beleza artística e da beleza natural, ou a questão de saber se a qualificação do belo pertence realmente ao objeto ou apenas reflete um sentimento do sujeito. Quanto às outras qualificações estéticas, que eles não podem deixar de mencionar, elas não são senão afloradas. Para tomar somente o caso mais ostensivo depois de Kant, o do sublime, constata-se que nos dois livros clássicos franceses da primeira metade do século XIX que tratam, parcial ou totalmente, de estética, a saber o livro de Victor Cousin (Du vrai, du beau, du bien, 1853, retomando lições de 1815-1821) e o de Théodore Jouffroy (Cours d’esthétique, 1843), que o primeiro, sobre uma centena de páginas consagradas ao belo, tem somente uma sobre o sublime, e que o segundo, em quarenta lições, não tem mais que uma, relegada ao final, sobre essa mesma noção.


* * *


A introdução expressa no vocabulário da estética da palavra categoria, no sentido em que a entendemos hoje, com o conceito que recobre, não demoraria a causar mudanças profundas na orientação dos trabalhos de estética, e mesmo na idéia que se fazia do objeto desses trabalhos.


Primeiramente, seu efeito mais evidente é o de dissociar claramente os dois sentidos da palavra belo, que até então permaneciam mais ou menos confundidos. No sentido amplo e clássico em que a noção de beleza era vista como constituindo o próprio objeto da estética, vem juntar-se agora, tendendo a substituir-se, um sentido mais estreito e mais preciso, o do belo como categoria distinta. Esta nova noção distingui-se assim da precedente como uma espécie se distingue do gênero no qual ela está incluída na comunidade de várias outras espécies. Se não a tomamos apenas nesse sentido técnico é porque a definição tradicional da estética como ciência do belo tornar-se-ia muito limitada: é como se se dissesse que a zoologia é o estudo do cavalo. Na verdade, a confusão não era muito grave na época clássica, quando a espécie quase coincidia com o gênero, sendo que o ideal que atraía os artistas era essencialmente o de alcançar essa nobreza serena, esse equilíbrio harmonioso, essa delicadeza de gosto, que caracterizam precisamente o que hoje chamamos a categoria do belo. Mas se o esteta pode decretar que é neste sentido restrito que ele entenderá a palavra, não pode, contudo, impedir que, tanto no vocabulário corrente de hoje, como no uso clássico, a palavra tome o sentido mais amplo no qual designa todo e qualquer valor estético em geral. Sem dúvida, o melhor é reconhecer francamente essa ambigüidade e admitir que a mesma palavra é tomada em dois sentidos distintos, nos quais um engloba o outro como um caso particular.


Contudo, ainda é insuficiente calcar a sua distinção sobre a distinção da espécie para o gênero e não ver nela senão uma diferença de amplitude; há também uma diferença de plano. No sentido amplo, a palavra belo funciona como predicado de um julgamento de valor. Dizer que uma coisa é bela significa que se lhe atribui uma grande qualidade estética; é fazer um julgamento admirativo, laudativo, cuja negação torna um sentido desfavorável, depreciativo. Enquanto que afirmar que uma coisa é bela, no outro sentido da palavra, é enunciar um simples julgamento de realidade: nós a descrevemos, nós a caracterizamos com uma palavra para distingui-la de outras coisas que possuem outras qualidades estéticas, por exemplo, serem graciosas, pitorescas, etc.


É como quando se diz: isto é cachorro e não um gato, isto é vermelho e não azul: simples constatação, e não apreciação. Sua negação não tem como efeito desvalorizar o objeto de que se fala, mas somente o de recusar-lhe um certo conjunto de traços. E a distinção entre tal conjunto de traços e tal outro não implica por si mesma nenhuma hierarquia entre eles. Enquanto objetos de estudo, todas as categorias devem ser postas no mesmo plano. Isso não impede que não possamos preferir uma coisa à outra, como preferimos, por exemplo, os cachorros aos gatos, mas a estética, enquanto disciplina que visa à cientificidade, deve, como já defendia Taine, deixar de ser normativa para tornar-se simplesmente descritiva.


De fato, as duas distinções que acabamos de fazer, entre o gênero e a espécie e entre a apreciação e a constatação, têm, freqüentemente, tendência a se associar. Quando ouvimos a palavra belo no sentido específico da categoria, a maior precisão do conceito, que ao mesmo tempo restringe sua extensão, tende a reduzi-lo à simples descrição, axiologicamente neutra. Enquanto que, na medida em que damos ao conceito um valor laudatício, nós afrouxamos a determinação e a especificação, de modo a torná-lo ajustável a outras categorias estéticas diferentes da do belo, alargando assim seu domínio de aplicação. No entanto, essa associação entre a descrição e o valor permanece bastante solta já que, segundo as épocas e as sociedades, a hierarquia dos valores entre as diversas categorias é variável, sem que por isso essas diferenças de gosto mudem o que quer que seja em suas características próprias. Quando se diz, no sentido descritivo, que uma coisa é bela, isso não implica absolutamente, como uma conseqüência necessária, que a estejamos situando no ponto mais alto da escala. De fato, esta mesma categoria do belo pode tomar, segundo os gostos dominantes em um dado momento e em um dado meio, um valor mais fraco e mais ou menos depreciativo, ao ponto de tender, às vezes, para os valores negativos. Sabe-se bem, por exemplo, que em nossa época essa categoria não apenas não se situa no ponto mais alto, tendo sido destronada por suas rivais, mas que até mesmo, na boca de alguns, dizer que uma coisa é bela é dizer que ela não é nada além de bela, o que é uma maneira de denegri-la.


O que acaba de ser dito a propósito do belo deve ser estendido a todos os predicados estéticos. Eles podem tender, em certos casos, para a pura descrição, mas freqüentemente acrescentam uma nuança mais ou menos marcada de apreciação, o que faz deles, ao mesmo tempo, predicados de valor. Se digo de uma mulher que ela é graciosa ou elegante, não é apenas uma maneira de caracterizá-la, mas também uma maneira de elogiá-la, pois a graça e a elegância são geralmente vistas como pertencendo aos valores estéticos favoráveis. Mas é preciso ficar atento na análise e estabelecer claramente a distinção entre os dois componentes, descritivo e apreciativo, das qualificações estéticas, sem por isso deixar de reconhecer que estão freqüentemente ligadas de modo estreito, ou que uma domina claramente a outra. Essa exigência é particularmente imperiosa no caso do belo. Cada vez que o esteta empregar esta palavra, ele deverá se perguntar se se trata de um belo-valor ou de um belo-categoria. É naturalmente neste último sentido que devemos, em princípio, entendê-lo quando fazemos o elogio das categorias estéticas.


Os filósofos reconhecem, de acordo com o uso que é feito das palavras que designam as categorias estéticas, e principalmente a do belo, que essas qualificações resultam da confluência de duas correntes semânticas.


<> (L. N. Stolovitch, “L’étymologie du mot ‘beauté’ et la nature de la catégorie du beau”, Revue d’esthétique, XIX, p. 257). Sua conclusão, sempre, para a categoria do belo é que “sua função gnoseológica não é dissociável de sua natureza valorativa”. No uso, sem dúvida. Na análise, contudo, como ele próprio o faz, é bom separá-las.


* * *


Reconhecida essa distinção, poder-se-ia ainda, rigorosamente falando, manter a definição tradicional da estética como ciência do belo; mas isso só poderia ocorrer, evidentemente, sob a condição que se diversificasse a própria idéia de beleza, nela incluindo suas “modalidades”.


Desse modo, com a introdução da noção de categoria, no sentido técnico que o esteta dá a esse termo hoje, e com a multiplicação das categorias, o próprio objeto da estética se transforma. Seu problema maior agora encontra-se centrado nessa nova noção. Estabelecer a lista das categorias, determinar suas relações mútuas, precisar pela análise os caracteres próprios de cada uma: tais são hoje as tarefas que se propõe o esteta. Em ligação estreita com a dissociação entre as duas acepções da palavra beleza, o sentido amplo e normativo de um lado, o sentido específico e descritivo de outro, a elaboração do conceito de categoria tem assim como outro efeito o de dar aos trabalhos dos estetas uma nova orientação. A distinção do belo natural e do belo artístico, com o problema de suas relações, que tinha grande importância na estética tradicional, recua agora para um plano de fundo. A estética não é mais a ciência do belo; tornou-se a ciência das categorias estéticas.


Não é um acaso que essa reviravolta não se dê senão no final do século XIX. Até o século XVIII, os caracteres que se reconheciam próprios do belo, objeto da estética, eram aqueles da beleza clássica. Os seus modelos haviam sido fornecidos pela arquitetura, pela escultura e pela poesia dos Gregos; a arte não podia senão deles se inspirar. O século de Péricles, o quattrocento, o reino de Luís XIV marcam os grandes momentos da arte, e é pela imitação mais ou menos perfeita de suas obras que se julgava a beleza e por sua justa apreciação que se julgava o bom gosto. Conhecia-se, é claro, outras formas de arte além da arte clássica, mas que eram afastadas com desdém, qualificando-as de bárbaras ou de góticas. Ora, desde o começo do século XIX – quando o romantismo então nascente já questionava seriamente a assimilação do ideal artístico e do valor estético só à beleza clássica – os trabalhos dos historiadores, dos pré-historiadores, dos arqueólogos, assim como os dos etnógrafos, alargaram prodigiosamente nosso campo de visão do ideal artístico e, ao mesmo tempo, modificaram a idéia, melhor dizendo as idéias, que dele se faziam as diferentes sociedades. Tornava-se cada vez mais difícil centrar o estudo do ideal artístico apenas sobre a análise da arte clássica. O ideal não era mais o padrão; tornava-se uma das formas históricas do ideal artístico, a menos que se chamem clássicas – num outro sentido da palavra – as obras exemplares, aquelas que situam no topo de um estilo histórico. Jogando com o duplo sentido da palavra, poder-se-ia dizer que o classicismo não é senão uma das múltiplas maneiras de buscar o clássico. O que significa relativisá-lo. “Não há senão instantes clássicos – os pontos mais altos de movimentos que continuam sua curva por sua própria natureza. Crer que um classicismo possa escapar de sua órbita de astro para tornar-se um modelo permanente, é acreditar em estrelas fixas... O grande estilo não é mais privilégio de uma cultura”6. A noção geral de beleza explodia. Percebe-se como essa diversificação chamava a das categorias estéticas, ao mesmo tempo em que suscitava um interesse crescente por uma análise da arte fundada na sua história.


Sobre este último ponto, a reviravolta foi dada por Hegel. É verdade que ele continua a caracterizar a estética como “a filosofia, a ciência do belo”, mas acrescentando uma correção capital: “mais precisamente, da beleza artística com a exclusão da beleza natural”7. Por isso, sua monumental Esthétique é uma filosofia de arte fundada na sua história, em que se reconhecem três formas sucessivas do ideal estético e na qual a arte clássica está envolvida por uma arte simbólica, que a precede, e uma arte romântica que a sucede: para ele, em suma, aí estão, como hoje as chamaríamos, as categorias fundamentais do julgamento estético. Essa maneira nova de abordar a estética iria, pouco a pouco, ganhar terreno. Se se havia pedido a Cousin e a Jouffroy para fazerem um curso de caráter geral e filosófico para os alunos das Belas Artes, nenhuma dúvida de que ainda tratassem do belo. Mas quando, na geração seguinte pede-se a Taine que o faça é com sua Philosophie de l’art, fundada sobre sua história, que ele ensinará (de 1865 a 1869). Pode-se exprimir naturalmente esse estado de coisas dizendo que o objeto da estética se desdobra: filosofia do belo, filosofia da arte. De fato, é freqüentemente o conjunto dessas pesquisas que se reúnem sob o termo estética. Mas um uso novo tende a se estabelecer, que é o de reservar a palavra estética para o primeiro desses estudos, excluindo, portanto, a não ser como meio, a filosofia da arte que, sem se confundir com sua história, apóia-se, contudo, nela de forma indispensável. Nessas condições, a estética torna-se a ciência não do belo isoladamente, mas do conjunto das categorias estéticas, cujo estudo pode incidir tanto sobre a natureza como sobre a arte.


1 Karl Groos, Einleitung in die Aesthetik, 1892, p. 46-51.
Victor Basch introduziu, em seguida, a palavra francesa no seu Essai critique sur l’esthétique de Kant, 1896; ela foi retomada e expandida por Ch. Lalo: L’ Esthétique experimentale contemporaine, 1908, Sentiments esthétiques, 1910, Notions d’esthétique, 1925.


2 Ed.
Burke, A philosofical inquiry into the origin of our ideas of the sublime and the beautiful, 1761; Em Kant, Beobachtungen über das gejühl des schönen und des Erhabenes, 1764; M. Mendelssohn, Ueber das Erhabene und Naïve, 1771.


3 J.Winckelmann, Von der Grazie in der Werken der Kunst, 1759; H. Home, Elements of criticism, 1762-65, cuja segunda parte trata da dignidade e da graça; Fr. Schiller, Ueber Anmut und Würde, 1793.


4 Cf. E. H. Gombrich, L’Art et son historie, trad. Fr., 1963, p. 313 : “Ingleses, rendidos ao charme das paisagens de Lorrain, tentaram transformar paisagens verdadeiras de seu país até fazê-las parecer com as invenções do pintor. Um parque, uma paisagem que fazia pensar em Claude Lorrain, eles a consideravam como <>, como fazendo parte dos prestígios da pintura”.


5 Le P. André, Essai sur le beau, 1741; Diderot, Traité du beau, intitulado também Recherches philosophiques sur l’origine et la nature du beau, 1750 ; Pr. Vischer, Aesthetik oder wissenschaft des schönen, 3 v. 1847-1857 ; Ch. Levèque, La science du beau, 2 v. 1861 ; G. Santanya, The sense of beauty, 1896 ; Th. Lipps, Aesthetik, psychologie des schönen und der kunst, 3 v. 1903, 1905, 1921; Vernon Lee, The beautiful, 1913.


6 A. Malraux, Psychologie de l’art, v.I, Le musée imaginaire, 1949, p. 145-146.


7 Esthétique, lições feitas de 1818 a 1829; trad. S. Jankélévitch, 1944, t. I, p. 7. A razão dessa exclusão, que não nos interessa diretamente aqui, é que “o belo artístico é superior ao belo natural, porque é um produto do espírito” (Ibid., p. 8).


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Reportagem

A sonhada beleza virtual

Por Carolina Cantarino


Revistas especializadas em regimes, dietas e “fitness”, convênios médicos para a realização de cirurgias plásticas estéticas, aplicações de silicone e Botox, academias, musculação, spas, programas de “transformação da aparência” através de intervenções cirúrgicas, tanto nos canais pagos de televisão quanto nos abertos. A beleza, no mundo contemporâneo, é sinônimo de obsessão pela magreza e pela juventude, cada vez mais alimentada pela mídia e pela publicidade. Em nome delas - e contra a flacidez da pele e a gordura - uma série de novas tecnologias – médicas e cosméticas - encontram-se disponíveis para que cada indivíduo possa melhorar a sua “imagem pessoal”, conseguindo, assim, mais “auto-estima” e sucesso. O objetivo é se aproximar o máximo possível das imagens dos corpos perfeitos vendidos pelos meios de comunicação de massas.



Lipofobia


A valorização da magreza suscita repugnância e preconceito em relação à gordura. Um estudo da Universidade de Yale, divulgado em maio último, trouxe dados bastante reveladores sobre o estigma da obesidade. Ao perguntar o que as pessoas estariam dispostas a sacrificar em nome da garantia de nunca serem gordas, dos 4 mil e 283 participantes que responderam à pesquisa, 46% abririam mão de um ano de suas vidas para não serem obesos; 15% desistiram de 10 anos; 25% prefeririam ser estéreis do que obesos; 15% sofrer de uma depressão profunda do que ser gordos; 14% prefeririam ser alcoólatras; e entre 4 a 5% dos entrevistados aceitariam até mesmo perder um membro do corpo ou ficar cegos do que viver com um peso muito acima do que acham que deveriam ter.


A pesquisa revela, assim, o caratér moral que a idéia de gordura carrega nos dias de hoje, possuindo uma série de conotações negativas. “Assim, por exemplo, o sujeito que tem excesso de peso é reprovado por não ser um bom gestor de si e por ser moralmente fraco, pois em um mundo comandado pelos ditames do mercado e no qual vigora a administração individual dos capitais vitais, ‘só é gordo quem quer’”, lembra a antropóloga Paula Sibilia.


“E sendo óbvio que ninguém poderia mesmo querer tal coisa, supõe-se que só terá excesso de peso quem não conseguir se autocontrolar – ou seja, quem for incapaz de não ser gordo; quem é negligente, ineficaz, fraco”.


Cada vez mais populares e acessíveis – por conta dos convênios de saúde, da possibilidade de parcelamento financeiro das cirurgias e também das inovações tecnológicas envolvidas nos próprios procedimentos médicos – as cirurgias plásticas alimentam o discurso da beleza como o resultado da responsabilidade individual pelo próprio corpo. A pressão social sobre aqueles que não conseguem (ou não querem) emagrecer ou corrigir possíveis “defeitos” do corpo também é grande porque recusar a beleza de um corpo magro torna-se sinal de negligência para consigo próprio. Esse é o tipo interpretação feita por muitos profissionais da área de recursos humanos nas empresas, responsáveis pela seleção de novos funcionários, por exemplo. A falta de beleza passa a ser vista como resultado de frustrações, problemas de auto-estima, enfim, como um “problema psíquico”.


Para Liliane Brum Ribeiro, antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os valores que dão sentido à crescente procura pela cirurgia plástica estariam atrelados a essa “psicologização” da experiência com o corpo que transparece, segundo ela, nas justificativas mais comumente dadas pelas mulheres para a realização de cirurgias: “sentir-se bem consigo mesma”, “melhorar a auto-estima” ou “gostar do seu corpo”. Segundo Ribeiro, a ênfase nos aspectos “interiores” e na idéia de bem-estar é recorrente, por exemplo, no discurso do médico Ivo Pitanguy, referência mundial na cirurgia plástica.


“Nesse sentido, ao mesmo tempo em que as práticas médicas apresentam à mulher a possibilidade de realizar seu desejo de possuir um ‘corpo perfeito’, a existência de uma cultura ‘psi’ que tende a explicar tudo a partir da interioridade do sujeito, leva os indivíduos a encontrar na auto-estima um dos modos de justificar a necessidade de se adequarem a modelos estéticos”, afirma Liliane Brum Ribeiro, em artigo sobre a medicalização dos corpos femininos.



Imagem pessoal


Injeção de toxina botulínica (como o Botox) ou de outras substâncias nas técnicas de preenchimentos de rugas, injeção de gordura nos lábios, lipoaspiração de gordura (até mesmo do rosto), implantes de silicone no seios. Para Paula Sibilia, tanto essas intervenções estéticas quanto a a obsessão por músculos definidos dos fisiculturistas- dos quais um dos mais famosos ainda é Arnold Schwarzenneger – seriam a expressão do desejo de se alcançar um corpo “liso”, “polido”, “esticado”, livre de rugas e outras marcas da pele, cada vez mais próximos, assim, da beleza plástica das imagens digitalizadas presentes na mídia. Não é por acaso que programas de edição gráfica como o Photoshop, o Illustrator e o Indesign desempenham papel fundamental na construção de imagens publicitárias que expõem “corpos belos” dos quais todos os “defeitos” são eliminados, retocados ou corrigidos por esses “bisturis de software”: “É precisamente esse modelo digitalizado – e, sobretudo, digitalizante – que extrapola as telas para impregnar os corpos e as subjetividades, pois as imagens assim editadas se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos na própria carne virtualizada”, afirma Sibilia.


A busca pela modificação da aparência através de dietas, ginástica e intervenções cirúrgicas seria, portanto, uma tentativa de aproximação com os corpos perfeitos das imagens virtuais. Por isso, para Elaine Zancaela, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a tecnologia presente nos procedimentos estéticos se encontra na mesma ordem da tecnologia das imagens gráficas, compartilhando uma força em comum: a importância dada à visualidade na sociedade contemporânea na qual os indivíduos, cada vez mais preocupados com a aparência, estariam se construindo também como imagens.


Zancaela explica que, desde o surgimento da fotografia, as tecnologias da imagem passaram a ter um papel importante na criação de uma cultura que valoriza a aparência. Inspirada pelo trabalho de Susan Sontag, Zancaela lembra que vivemos num “mundo-imagem” no qual a relação entre imagem e realidade, entre virtualidade e materialidade foram invertidas: passa-se a atribuir às coisas reais as qualidades das imagens. “Essa inversão entre imagem e realidade denota uma grande valoração do aspecto visual na percepção humana inerente ao convívio com enorme profusão de imagens. Portanto, como a mídia digital continua a ser um meio visual expresso através de tecnologias de interfaces gráficas, técnicas como a computação gráfica, fotografias digitais inseridas em celulares, pdas e fotologs, há um reforço da importância da imagem como ocorre desde a invenção da fotografia. E isso, conseqüentemente, destaca a valorização da aparência visual nesses meios”.


É através das imagens dos corpos perfeitos (tratados digitalmente) das modelos e de outros ícones da cultura pop, da TV e do cinema que um padrão estético - baseado na perfeição, na magreza e na juventude - é disseminado pela mídia e alimentado pela indústria da beleza. Padrão impossível de ser alcançado porque irreal, virtual, segundo a antropóloga Fabiana Jordão Martinez, doutoranda em ciências sociais (Unicamp): “O corpo, hoje, é visto como um projeto, um devir, um sacrifício para se alcançar o desejo do que se quer ser e se sentir satisfeito. O problema é que esse projeto nunca é finalizado, é uma promessa impossível de ser alcançada porque o modelo ideal de beleza é virtual e, por isso, perfeito”. Por conta desse padrão estético inatingível é que as clínicas estéticas estão repletas de clientes: tratam-se de freqüentadores assíduos, sempre em busca de novidades. “A tendência de quem começa a fazer essas intervenções no corpo é a compulsão, é não parar mais”, lembra a antropóloga.



Lapidação da imagem


Ícones da beleza mas também da confusa relação entre aparência, subjetividade, materialidade e virtualidade que caracteriza o mundo contemporâneo, a carreira das modelos profissionais é marcada por um conjunto de práticas relativas à produção simultânea de imagens e corporalidades. Em sua dissertação de mestrado intitulada “Espelho de Narciso: corpos e narrativas de consumo”, Fabiana Martinez descreve o processo de “lapidação da modelo”, através do qual sua imagem pessoal vai sendo construída. Através da aparência física (e dos “cuidados” com o corpo, principalmente através de dietas), da imagem virtual (um complexo trabalho de fotogenia e produção fotográfica) e da transformação da sua própria subjetividade, a modelo vai sendo transformada numa mercadoria e aprendendo como vender a imagem de si própria.


As adolescentes que entram nesse mercado possuem entre 12 e 16 anos. Segundos os profissionais das agências de modelos (os “agentes”), essa faixa etária é a preferida porque as iniciantes ainda estão em fase de desenvolvimento - tanto físico como psicológico - o que facilitaria a assimilação das regras e práticas que a profissão requer: como se alimentar, o que vestir, quais comportamentos se deve ter diante dos clientes. “Cuide de sua aparência: ela é o seu capital” é uma das advertências constantes numa cartilha distribuída às chamadas new faces por uma agência paulistana. Um padrão estético, baseado na altura e na magreza, impõem as medidas corporais que qualquer modelo deve ter: no mínimo, 1 metro e 70 centímetros de altura, 90 centímetros de busto, 60 de cintura e 90 centímetros de quadril.


“É uma angústia permanente. As dietas não são saudáveis porque tudo em gira em torno de um trabalho que nunca se sabe quando vai aparecer, que é inconstante e imprevisível e para o qual é preciso perder peso rapidamente. As modelos sempre estão controlando a alimentação e apostando nessa incerteza”, afirma Fabiana Martinez. Por isso, nas vésperas da realização de um teste para um trabalho, o jejum é a prática mais recorrente. E todo esse processo é facilitado porque, geralmente, são pré-adolescentes que estão morando sozinhas em São Paulo, distantes da família e mesmo da escola, tendo que aprender a se comportar como adultas dentro de uma profissão, vivendo só da expectativa em relação ao sucesso. Muitas relatam transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia.


Mas a “lapidação da modelo” não se resume à sua aparência corporal: ela se estende também para a produção de sua imagem. Durante o período inicial da profissão também é preciso “descobrir a imagem da modelo”, ou seja, o que ela está apta para vender, quais as suas potencialidades de representação. A modelo passa, então, por um período de testes de fotogenia, sendo enviada para fotógrafos e produtores, para que também se torne conhecida no meio. As respostas do mercado é que determinarão o que ela vai ser: uma modelo comercial (direcionada para campanhas publicitárias em revistas ou TV) ou de moda (realização de desfiles e editoriais fashion).


Por conta do diálogo entre aparência corporal e imagem, a realização de cirurgias plásticas não é uma prática muito recorrente entre as modelos. “Ao mesmo tempo em que existe a imposição de um padrão estético, existe também a valorização de uma ‘beleza natural’, dos atributos ‘naturais’. O mais comum são as próteses de silicone, entre as modelos comerciais, que costumam fazer campanhas publicitárias como as de lingerie ou de cerveja”. Fabiana Martinez conta a história de uma modelo bem-sucedida que possuía diversas cicatrizes pelo corpo por ter sofrido um acidente quando ainda era criança. As marcas não eram um problema porque “o Photoshop corrige tudo”. “Esse diálogo entre o auto-conhecimento que elas possuem do próprio corpo e da sua imagem é constante. Faz parte desse mercado conhecer as potencialidades de sua própria imagem, que pode ser corrigida pela computação gráfica. As intervenções cirúrgicas, nesse caso, não são tão ostensivas por conta dessa possibilidade de construção da imagem”.


O potencial da modelo depende da sua capacidade de vender imagens de produtos e, ao mesmo tempo, de vender a imagem de si própria. “Eu sempre pergunto para os agentes e fotógrafos: o que é mais importante, a modelo real ou a sua fotografia? Eles dizem que, em primeiro lugar, é a fotografia, mas a modelo não pode se afastar muito dessa imagem”, conta Martinez.


Para corresponder à imagem construída de si própria (a “mulher sensual”, a “bonequinha”, a “beleza clássica”, a “exótica”, a “mulher com personalidade e atitude”), muita disciplina é exigida, não só em relação ao corpo – que é sempre a principal preocupação - mas também com a própria subjetividade. “Sobra muito pouco tempo para elas serem elas mesmas, podendo exercer a sua individualidade, já que elas entram muito cedo na profissão. Para muitas delas, o sonho é ter uma ‘vida de verdade’, ser uma ‘mulher normal’”, afirma a antropóloga.


Para reproduzir a imagem de si próprias, seja na fotografia ou fora dela, as modelos vivem sob constante vigilância – dos agentes e de si próprias. As expectativas em relação à transformação do próprio corpo – comuns em qualquer adolescente – são vividas com mais angústia e ansiedade: é um processo tenso, em que cada detalhe do corpo é acompanhado, porque dele é que depende o sucesso ou o fracasso na carreira: é preciso, pelo menos, crescer e ganhar a altura desejada. Engordar, jamais. Por conta do cotidiano da profissão – pontuado pela realização de testes para campanhas publicitárias e desfiles e pela concorrência acirrada – é exigido das adolescentes que elas saibam lidar com a rejeição dos clientes por conta dos seus “defeitos” apontados sem piedade: um “nariz muito grande” ou alguns centímetros a mais no quadril.


Por outro lado, a profissão de modelo muitas vezes funciona como um drible numa história de rejeição que sofreram no passado. Muitas meninas, durante a infância, eram alvos de piadas na escola, por serem muito altas. Ao tornaram-se modelos, ganham o reconhecimento e a aceitação social de sua aparência. “A profissão de modelo é pontuada por uma série constante de contradições: satisfação e angústia, gratificação e pressão. Mesmo sendo ícones de beleza, por estarem sob o constante julgamento dos outros e de si próprias, essas mulheres, contraditoriamente, são as que se sentem mais feias”, lembra a antropóloga.


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Reportagem
Diversidade garante expansão do mercado

Por Mariana Perozzi


A diversidade étnica, econômica e cultural da sociedade brasileira, somada aos diferentes padrões de clima, informação e exigência dos consumidores, abre espaço para o surgimento de milhares de empresas (de micro-confecções a grandes indústrias de cosméticos) no país. O setor da beleza vem crescendo no Brasil, para atender a um público cada vez mais segmentado, refletindo as influências da moda, da mídia e dos movimentos sociais.


No ramo de perfumaria e cosméticos, inúmeras marcas, linhas de produtos, embalagens e preços visam suprir o gosto de cada consumidor, sendo os produtos para cabelos (crespos, lisos, ondulados, secos, oleosos, danificados etc) um exemplo. Além dos produtos étnicos, a indústria tem investido também em conceitos como bem-estar, relaxamento do corpo e contato com a natureza, por meio de óleos corporais, hidratantes etc. O desenvolvimento de produtos para retardar o envelhecimento da pele, principalmente a do rosto, também recebe forte investimento e aporte tecnológico. É um mundo de promessas, cor, jovialidade, inovação tecnológica e auto-estima.


Segundo a professora do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ruth Helena Dweck, os brasileiros estão entre os povos mais vaidosos do mundo, comportamento percebido pela produção brasileira da indústria de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos. A preocupação com a beleza impulsiona ainda o setor de serviços, com a sofisticação dos salões e clínicas de estética e o quase desaparecimento das barbearias, afirma Ruth, que coordenou o estudo "O impacto socioeconômico da beleza – 1995 a 2004", tornado público no início deste ano.


Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), o setor apresentou, entre 2001 e 2005, um crescimento médio de 10,7% ao ano. No mesmo período, o PIB total brasileiro cresceu apenas 2,2% ao ano. Contribuem para essa performance a maior participação da mulher no mercado de trabalho; o interesse crescente dos homens por produtos de beleza; o aumento da expectativa de vida e a conseqüente “necessidade” de parecer jovem; os ganhos de produtividade decorrentes do uso mais intensivo de tecnologia, permitindo que os preços praticados pelo setor nos últimos cinco anos subissem menos que a inflação.


Os dados da Abihpec mostram a existência de quase 1.400 empresas fabricantes de produtos de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos em 2005. Do faturamento total, mais de 70% provêm de 15 empresas de grande porte, indicando razoável concentração.


Estima-se que, no ano passado, o setor tenha gerado mais de 2,8 milhões de oportunidades de trabalho, entre revendedoras, cabeleireiros, esteticistas e outros. “Devido à pouca qualificação exigida, o setor de serviços de beleza torna-se a grande porta de entrada para o trabalho urbano, principalmente para as mulheres, depois do trabalho doméstico. No entanto, vem crescendo o número de profissionais com nível universitário e do sexo masculino”, afirma a professora Ruth Helena Dweck. Os salários no setor continuam baixos – em média, 1,7 salários mínimos, enquanto a média nos serviços em geral é de três salários mínimos.


A professora da UFF destaca outra variável que ajuda a explicar o crescimento do setor de estética e higiene pessoal no país: o fato de a beleza ser fator de discriminação no mercado de trabalho. De acordo com os resultados de sua pesquisa, pessoas de “boa aparência” tem melhor aceitação – e, inclusive, melhor remuneração – em todos os setores da economia. “A maioria das mulheres e um percentual crescente de homens se preocupam com a aparência e compram produtos para melhorá-la. As mulheres de renda mais baixa comprometem, proporcionalmente, uma parcela maior de sua renda com cosméticos do que as mulheres de renda mais elevada”, adiciona.


Igualmente decisiva para ratificar a importância socio-econômica da beleza é a indústria da moda. Determinante das tendências de cores, estilos e padrões estéticos, a moda tem a seu favor o imaginário coletivo, um fetiche relacionado à elegância e as aspirações pessoais voltadas ao “ser belo”, conferindo aos fatores psicológicos um peso cada vez maior nas decisões de compras.


As vitrines, por exemplo, têm função importante nessa construção psicológica. Nos shopping centers e nas butiques refinadas, as vitrines se caracterizam pela disposição de peças e acessórios na forma de conjuntos. Mais do que um produto, a loja vende um estilo, reforçado pela decoração e pela música do ambiente, cujo objetivo é aproximar o consumidor de sua privilegiada posição social. Já o grande comércio varejista distribui suas peças de roupas de forma aleatória, enquanto nos sacolões populares a vitrine muitas vezes nem existe. Predominam os produtos dispersos horizontalmente em grandes bancadas e os dispostos em araras. Ao contrário da idéia de conjunto, a desvinculação entre as peças visa desconfigurar os indicadores de uma posição social menos privilegiada.


Segundo Queila Ferraz Monteiro, professora dos cursos de moda da Faculdade Belas Artes, do Senac e da Universidade Anhembi Morumbi, aproximadamente 17.400 fábricas operam no setor têxtil brasileiro, gerando 1,2 milhões de empregos diretos. A participação é superior a 4% do PIB nacional. Para os próximos anos, a expectativa é de expansão, com a continuidade do aumento da produção de peças de vestuário.


A indústria nacional apresenta-se bastante fragmentada: cerca de 70% das empresas são de pequeno porte, tendo sua sobrevivência viabilizada por pela diversificação da demanda, com uma variada gama de tribos consumidoras de vestuário e agregados e o lançamento das coleções de moda rápida, que exigem flexibilidade na estrutura produtiva.


A abertura dos mercados e a mudança nos níveis de competitividade forçaram um processo de reestruturação no setor, em curso até hoje. A indústria têxtil, concentrada sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, reformou seus parques industriais, investiu em maquinário e tecnologia para competir com os fornecedores de matéria-prima estrangeiros e atender aos estilistas brasileiros. Ao mesmo tempo, as empresas grandes e bem posicionadas no mercado passaram a concentrar suas atividades no marketing, no design e no desenvolvimento de produtos, terceirizando a fabricação das peças. Grifes como M.Officer, Zoomp e Forum, trabalham justamente na valorização das respectivas marcas, ao passo que, na outra ponta, tem-se empresas como o Grupo Vicunha e a Santista Têxtil, especializadas no fornecimento de calça jeans e outros produtos para diversas grifes.


Esse movimento de modernização também suscitou a necessidade de formar profissionais para trabalhar no setor. Em 1995, após o primeiro Morumbi Fashion (atual São Paulo Fashion Week - SPFW), observou-se a explosão das escolas de moda. Segundo dados do Ministério da Educação, em 2003 existiam 35 cursos de graduação em moda no país. Considerando os cursos técnicos, seqüenciais e especiais, o número ultrapassava 60.


Em paralelo à evolução do setor têxtil e da qualidade da matéria-prima nacional a moda brasileira iniciou um processo de internacionalização. Um dos impulsos foi justamente a consolidação do SPFW, que trouxe a mídia estrangeira para o Brasil e estabeleceu um calendário nacional de moda, dando uniformidade a iniciativas antes isoladas. A repercussão mundial de super-modelos brasileiras que, como Gisele Bündchen, tiveram como berço o SPFW, também atraiu o olhar estrangeiro sobre o país. A moda passou a ser valorizada como negócio, contribuindo para a projeção externa – e claro, interna – dos estilistas nacionais.


Atualmente, as coleções de estilistas brasileiros já fazem parte dos mais importantes desfiles internacionais, como a Semana da Moda de Nova York, e ocupam espaço em cobiçadas lojas de grife do mundo. Além dos ateliês de roupas exclusivas, existem peças vendidas em grandes redes de varejo e mesmo em lojas menores. Estima-se que o Brasil tenha clientes em mais de 150 países.


Moda praia, roupas esportivas, lingeries e jeans são os segmentos que mais encontram receptividade fora do Brasil, sobretudo em função do design mais justo e da criatividade. Os acessórios seguem os passos do vestuário e ganham o mercado internacional. Jóias, sapatos e bolsas “made in Brazil” são vendidos na Europa, Estados Unidos e países árabes, sendo o sucesso atribuído às cores e à mistura de materiais, como madeiras nacionais com brilhantes e rubis.


Mas a moda brasileira também encontra muitas barreiras no exterior. Investimentos limitados, alto custo e excesso de burocracia, além da forte concorrência e da vaidade inerente ao mercado, são alguns entraves.


Segundo informações da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecções (ABIT), o setor vem registrando superávits na balança comercial desde 2001. Nos cinco primeiros meses de 2006, contudo, o saldo positivo caiu 91% frente ao mesmo período do ano anterior. A desvalorização cambial é a principal responsável e, se a tendência persistir, pode resultar num balanço negativo em 2006. Para não perder competitividade e manter o bom relacionamento com clientes antigos, evitando a quebra de contratos e a perda de credibilidade, muitas empresas do ramo adotaram como estratégia a redução das margens e o achatamento dos preços. Outras que optaram por não reduzir a margem de lucro reajustaram os preços, dando seqüência à internacionalização da marca através da busca por novos clientes.


O segmento de produtos para beleza também está presente no exterior, embora os investimentos mais efetivos em exportação sejam recentes. Num projeto ambicioso, a Natura, por exemplo, inaugurou no ano passado sua primeira loja mundial, localizada em Paris – a meca dos cosméticos e perfumes. A empresa já atua no sistema porta-a-porta em países como Argentina, Chile, Peru, Bolívia e México. O Boticário, por sua vez, possui mais de 60 lojas espalhadas pelo mundo.


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Reportagem
Diferentes modos de ser belo

Por Patrícia Mariuzzo


Nenhum outro animal na natureza transforma o próprio corpo tão violentamente como os seres humanos. Essa transformação é parte do processo de humanização, que transforma o corpo num artefato cultural. Perfurações, tatuagens, escarificações, pinturas, são exemplos de modificações que funcionam como sinais de identidade social. Esses sinais, por sua vez, podem variar conforme cada cultura e também conforme os diferentes segmentos sociais no interior de um mesmo grupo, de acordo com a religião e o momento histórico. Como explica o antropólogo da USP, Renato da Silva Queiróz, também varia em cada comunidade o modo como são avaliadas e como se atribuem aspectos positivos e negativos a diferentes partes do corpo. Por isso, algumas recebem ornamentação mais elaborada porque são as partes socialmente mais valorizadas. Os índios Bororo, que vivem na região da bacia do rio São Lourenço, estado do Mato Grosso, enfeitam os lábios dos bebês para fortalecê-los e fazê-los crescer.


Nas comunidades indígenas, entretanto, o conceito de beleza é bem diferente do das sociedades ocidentais, pautadas por uma beleza fortemente corporal e anônima, sem história, que desvincula a aparência física das ações e modo de ser do sujeito. Assim, para eleger um indivíduo como belo, é considerado também o comportamento e as qualidades morais, além dos atributos físicos. Segundo a Renate Viertler, antropóloga que pesquisa os Bororo, para eles beleza implica em saúde, conduta socialmente correta e, principalmente, generosidade. Aquele que nada dá também deixa de receber e, por isso, é visto como mau, triste, feio e perigoso. A tristeza é irmã da feiúra, pois, na medida em que nada dá, nem faz para o seu semelhante, o indivíduo também não recebe cuidados corporais, ornamentos, presentes e outras coisas alegres da vida.



Se embelezar, se proteger, pertencer

É indispensável o uso de adornos e pinturas, que servem para realçar a beleza mas também para criar qualidades e proteger. Já os enfeites também agem como remédios. Algumas pinturas no corpo e no rosto têm a função de proteger contra doenças e maus espíritos. Para esses índios, ser humano significa não ter pelos no corpo. Assim, a depilação é requisito fundamental à beleza corporal, purificando certas partes e realçando o efeito estético das pinturas e adornos. Por causa desse padrão, os Bororos acham feios os rostos e corpos dos não-índios, cobertos de pelos. Conforme conta Viertler, eles criticam e desprezam a aparência física e os hábitos dos “civilizados”, bem como dos representantes de outras etnias. “O belo é associado ao mundo do semelhante e do conhecido, portanto, benéfico e tranquilizador. Enquanto isso, o feio remete ao diferente, ao desconhecido e ao imprevisível, pousada do inimigo e morada dos maus espíritos, que amedrontam qualquer ser humano”, explica.


Para ser belo entre os Bororo não é necessário apenas saber quais são os alimentos adequados, é preciso saber como consumi-los, ou seja, é preciso comer pouco. “Desvalorizam-se todos aqueles que, comendo muito, comem como porcos, bem como aqueles que ostentam barrigas e adiposidades, sinal de indolência e incontinência sexual”, descreve Viertler. É comum apelar para o vômito para afinar e tornar leve o corpo, principalmente em casais de pais de bebês recém-nascidos e de rapazes solteiros. “Os vômitos são vistos como técnicas de purificação e de fortalecimento. Por meio deles, é possível beneficiar o corpinho frágil das crianças que são vistas como prolongamentos vivos de seus pais”, diz ela.


O ideal do rosto é representado por uma cara achatada, semelhante à face do herói Onça, personagem mítico. Cabe à mãe achatar o rosto ainda mole dos bebês, enquanto o pai toma para si o encargo de desenvolver a força e a resistência dos filhos homens e solteiros, por meio de extenuantes exercícios físicos. Eles não gostam de nada mole e solto. Partes moles da cabeça como lábios inferiores dos meninos e lóbulos das orelhas dos jovens de ambos os sexos são perfurados para serem enrijecidos pelo uso de adornos labiais e brincos. Os indivíduos devem se apresentar com boa aparência física, bem cuidados e perfumados com resinas, bem compostos, endurecidos e amarrados, para serem bem recebidos no seu meio social.


Por estar associada a virtudes sociais, a beleza também pode ser alcançada por homens e mulheres maduros, ou seja, a beleza não é prerrogativa dos jovens. “A filosofia de vida dos indígenas permite que um adulto, sem maiores atrativos físicos, segundo nossa ótica de 'civilizados', possa chegar a ser visto como belo e sedutor, na medida em que pode desenvolver uma série de virtudes e competências sociais. Dentre elas, ressalta-se o controle das emoções, qualidade pessoal bastante valorizada pelas culturas indígenas, resultante de um prolongado processo de educação, conduzido por parentes dedicados”, destaca a antropóloga. A beleza é alvo de um esforço coletivo a ser reconquistado por todo bebê que surge em determinado tempo e em seu espaço de origem.


Do mesmo modo que entre os indígenas, também entre os muçulmanos, a beleza não é dada apenas por meio de dotes físicos. Homens e mulheres devem se destacar por suas qualidades intrínsecas, capacidade, inteligência e pela obediência às tradições religiosas que recomendam o recato e a discrição. “A maneira de viver e de tratar o próximo é que conferem beleza”, explica Helmi Ibrahim Nasr, do Centro de Estudos Árabes da USP e que traduziu o Corão para o português. Segundo ele, a boa conduta é mais valorizada nas mulheres pelo fato da cultura islâmica, ao contrário do que pensam os ocidentais, valorizar o papel feminino, principalmente as mães. “A mulher é vista como uma jóia, como algo que deve ser guardado, protegido”, salienta Nasr. Elas devem usar roupas folgadas, com tecidos leves que impeçam que a forma do corpo seja percebida. A recomendação é para que se opte por modelos simples de modo a não atrair a atenção das pessoas. Ao mesmo tempo, a mulher não deve ser desleixada ou suja. Para as casadas, é obrigatório o uso do véu cobrindo a cabeça que, mais do que um modo de vestir, reflete um comportamento, uma forma de falar e de aparecer em público que identifica a mulher como sendo muçulmana. O homem deve adotar a barba, que, segundo a tradição islâmica é uma marca masculina. Segundo o professor da USP, na Arábia Saudita, 95% dos homens usam barba.

O islamismo é um exemplo de como a religião conforma comportamentos e define padrões de beleza que se tornam naturais para os indivíduos. “As recomendações dadas pela religião são vistas pelos praticantes como formas de proteção e não como castigo, como restrições. Restrição é a visão do ocidente”, destaca Nasr.



Fidelidade ao grupo através das roupas


Enquanto os muçulmanos protegem as mulheres no ambiente externo, outra comunidade, a dos ciganos, faz questão de afirmar sua identidade para o mundo exterior, sendo a mulher o principal instrumento desta afirmação. Diferentemente também dos grupos indígenas, os rituais de beleza entre os ciganos concentram-se especialmente no vestuário das mulheres. “A identidade cigana é expressa nas relações com os não-ciganos, predominantemente pelas mulheres, que trazem essa identidade no corpo, nos modos de vestir”, conta Eliane Medeiros Borges, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, que estudou esse tema. Segundo ela, isso não quer dizer que não haja a consciência ou o sentimento dessa identidade entre os homens, mas isso não precisa ser mostrado do ponto de vista do corpo masculino. Em geral, eles se vestem de forma muito semelhante aos não-ciganos. “Entre os ciganos o vestuário aparece desdobrado em várias conotações, muito além da função mais imediata de revelar uma cigana ou cigano como tal”, completa ela.


Os mais jovens têm a liberdade de usar roupas comuns como saias curtas e jeans mas, a partir do casamento, quando assumem sua responsabilidade como mulher e mãe na comunidade, as ciganas passam a usar obrigatoriamente as vestes tradicionais: sais longas e largas, blusas decotadas, lenço na cabeça, muitas jóias. Tudo com muitas cores. A prata e ouro constituem uma boa parte do tesouro familiar, freqüentemente mais considerável do que permitiria supor o mau estado de suas roupas. As mulheres casadas usam um lenço na cabeça, adotado no dia seguinte da noite de núpcias. As saias longas são justificadas pelo recato que toda cigana deve ter em mostrar as pernas. Ao mesmo tempo, chama a atenção as blusas com grandes decotes, mesmo para as mais idosas. Os ciganos não têm constrangimento em ver suas mulheres expor parte do corpo. “Aparentemente, os seios têm conotação maternal e não sexual como na nossa sociedade. Contudo, embora haja grande exposição das ciganas, que se apresentam em praças para ler as mãos, elas jamais estarão sozinhas, mas sempre acompanhadas de outras mulheres”, destaca a pesquisadora. As mulheres ciganas também não participam dos nossos padrões de beleza, como por exemplo a magreza excessiva. “Normalmente elas casam-se muito jovens, são muito bonitas e vão engordando aos poucos, com a maternidade e o tempo e isso não é depreciativo para elas”, conclui.



Nem sempre a magreza é fundamental


A cultura tem um papel importante no modo pelo qual as mulheres percebem a obesidade. Segundo uma pesquisa feita na Universidade de Yale, Estados Unidos, enquanto para as mulheres brancas a obesidade representa uma imagem corporal negativa e uma perda tanto de atração sexual quanto de auto-estima, na cultura negra, a obesidade foi definida de modo positivo entre as representantes de comunidades negras, estando ligada à atração e desejo sexual, força, bondade, auto-estima e aceitação social.


Em algumas comunidades africanas, a gordura é um sinal de riqueza e saúde e podem aumentar as chances de fazer um bom casamento. Em Níger, país da África Ocidental, mulheres da comunidade Djerma se preparam para o casamento fazendo um regime para engordar. As mais bonitas não tem manequim menor do que 48. Porém, também lá, a beleza pode ter um preço alto. Da mesma maneira que o ideal de magreza empurra muitas mulheres para dietas perigosas, o processo para ganhar peso entre as djerma também coloca em risco a saúde das mulheres. Entre os instrumentos de que lançam mão está o uso indiscriminado de suplementos alimentares (às vezes de uso animal, porque são mais baratos que comida) e remédios para abrir o apetite sem acompanhamento médico. O risco é encarado com naturalidade porque faz parte do “esforço” da mulher na época da engorda. Homens que têm esposas magras são alvo de piada. A gordura está associada com a capacidade de ter e criar os filhos, daí serem valorizados seios grandes, quadril e nádegas avantajados. A valorização da obesidade é um paradoxo em Níger que apresenta um dos menores índices de desenvolvimento humano do planeta (IDH), adotado pela ONU para medir a riqueza e o bem-estar das nações.



Cabelos e cabeça


Outra característica estética predominante em regiões da África são as cores fortes, os tecidos estampados e alegres em roupas longas. Os cabelos são arrumados em tranças e enfeitados com contas coloridas. Entretanto, a escravidão na América mudou o modo como os negros percebem a si mesmos, determinando novos padrões e formas de se embelezar. Para Fábia Calasans, autora de um estudo sobre as relações raciais na educação a partir dos cabelos de homens e mulheres negros, a beleza é um processo histórico construído pelos valores da classe dominante, valores eurocêntricos. Daí que a boa aparência desejada pelas mulheres negras ser conseguida através de grandes alterações na aparência capilar. “O cabelo crespo, o nariz chato, os lábios grossos, a pele escura, não são valorizados por uma cultura que aprendeu a ver o homem negro como diferente, e esse diferente como inferior”, diz ela. “Nos dias de hoje, o alisamento, a chapa e o creme de pentear ainda são instrumentos utilizados pelas pessoas que se espelham na televisão, nos grupos de pagode, nas mulheres eleitas como modelo de beleza negra”, completa.


Ao mesmo tempo, movimentos estéticos e políticos sempre estiveram relacionados e, nesse contexto, o cabelo também virou uma forma de expressão, um fator de afirmação racial. Segundo ela, movimentos como o Ilê Aiyê, que surgiu na década de 1970, foram responsáveis por uma revolução estética que modificou a forma de expressão do corpo de homens e mulheres negras de Salvador, que passaram a vestir vermelho e usar tranças nos cabelos em uma atitude de valorização racial.


O mundo exibe tantas e tão numerosas variações biológicas e culturais que é um erro supor um universo padronizado dos modos de definição, avaliação e representação da beleza. Cada cultura define a beleza corporal à sua própria maneira. “O inventário de todas as cicatrizes, dos signos que cada sociedade imprime nos corpos de seus integrantes constitui um excelente caminho para decifrar-lhes o código e, sobretudo, para se demonstrar na superfície dos corpos, as profundezas da vida social”, acredita o antropólogo Renato Queiróz.


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Reportagem
Os oblíquos caminhos do belo

Por Yurij Castelfranchi


É curiosa a história da representação do belo no ocidente. Considerado fundamental em todas as épocas, o belo sempre desafiou artistas e filósofos com sua inefabilidade. As estátuas de Policleto, os templos das acrópoles gregas, os retratos de Leonardo, as mulheres de Rubens ou de Gauguin, representaram o belo. Mas um belo profundamente diferente a cada momento.


Muitas épocas tentaram definir um padrão de beleza, que a época subseqüente rejeitava ou transformava profundamente. Um acorde musical considerado demoníaco na Idade Média, é hoje usado e percebido como belo no blues e no jazz. Intervalos musicais dissonantes e de uso limitado na época de Mozart, são hoje típicos (e perfeitamente afinados) na música popular e comercial ocidental. Para Pitágoras, belas eram as proporções matemáticas entre números inteiros, que podiam representar até a música divina das esferas celestes. Para alguns dos artistas da Grécia clássica, belas eram as formas arquitetônicas que reproduziam a proporção áurea. Templos eram construídos com largura e altura em proporção “Pi”, que vale cerca de 1,618 e é presente em algumas estruturas biológicas (como a espiral da concha do molusco náutilo).


Porém, se hoje estamos acostumados a pensar que muitos conceitos “universais”, tais como verdade, beleza, natureza, são vagos, construídos socialmente, enraizados nas culturas e relativos a estas, o belo foi, em muitos momentos históricos, definido e considerado algo objetivo e absoluto. Para gregos e romanos, belo, verdadeiro e bom eram três valores supremos. Para os gregos antigos, o bom cidadão da pólis tinha de ser um homem “kalós kai agathós”, ou seja belo e virtuoso. Homem “belo” (kalós) era não só o de formas proporcionais, forte, são. “A antiga noção de belo”, explica Luciano Migliaccio, professor de história da arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas, “é um conceito normativo que responde a uma praxe técnica. O kalós grego (do verbo kaleo, chamar) é o que nos atrai, que suscita desejo. Nas artes figurativas, belo é o produto que imita melhor a natureza em seu processo criativo, correspondendo à norma geométrica e proporcional que governa, por exemplo, a construção do corpo humano. O belo, então, é concebido como um processo de adequação do produto humano ao pensamento divino, e governa o processo de criação na arquitetura, nas artes figurativas, como também na música”.


De acordo com Herbert Dieckmann (no Dicionário de história das idéias), em épocas pré-modernas a beleza era considerada como algo de existência objetiva e características universais. Platão, por exemplo, pensava que as representações materiais do belo compartilhavam da Beleza Absoluta, entidade que existia no mundo das idéias e era portanto absoluta, universal, não relativa, dotada da propriedade de “reconciliar o finito com o infinito” e que se manifestava “na proporção, na simetria, na medida e na harmonia das partes em relação com o todo”. Proporções e simetria ligavam então a beleza com o Bem, enquanto o belo revelava o Ser e era então ligado também à Verdade. A Verdade era garantia da Beleza.


Também para Aristóteles o belo respondia a normas objetivas. Porém, diferente de Platão, para o filósofo o belo não era definido e julgado em relação ao Ser e ao Verdadeiro, mas em termos de perfeição das formas, ou seja baseado em critérios objetivos não metafísicos. Suas componentes eram ordem, simetria, definição. Na Idade Média, Plotinos e Santo Agostinho retomaram as concepções de Platão e desenvolveram uma teoria do belo que dominou até o Renascimento. “O antigo conceito grego de beleza”, confirma Migliaccio, “influenciado em maneira substancial por Aristóteles, foi retomado no Renascimento junto com conceitos de origem platônica muito vivos no pensamento cristão. O belo era visto como reflexo da inalcançável transcendência divina”. Assim, menciona o historiador como exemplo, Michelangelo, em um soneto, pergunta ao amor se a beleza da mulher amada é percebida pela sua imagem ou se, na verdade, a beleza não seria uma imagem interior que, através do rosto da amada, remete à transcendência divina. “O artista tende para a segunda resposta: Michelangelo é o campeão de uma estética do sublime, ou seja, do belo como alusão ao transcendente, ao incompreensível, algo que só pode ser percebido através da forma criada. Se pensarmos na cúpula de São Pedro em Roma, de Michelangelo, percebemos como, para ele, a beleza está no esforço de chegar ao inalcançável, ao sublime que não pode ser entendido pela razão, ao reflexo da idéia divina que se manifesta no mundo criado”.


Porém, a noção do belo como algo objetivo, seja porque remeter ao divino, ao mundo das idéias, ou porque está ligado a critérios e normas não metafísicas porém universais, não resistiu na era moderna. A partir do século XVIII (e já no final do XVII), a fugacidade, inefabilidade e, sobretudo, a subjetividade do belo se tornam presentes com força na consciência de artistas e filósofos. Muitos, a partir do empirismo e, mais profundamente, com o Romantismo, começaram a se perguntar, no momento de definir algo ou alguém como belo, se estavam vendo em tal objeto ou pessoa caraterísticas que efetivamente possuíam, ou se estavam atribuindo tais características a eles. A passagem entre a antiga concepção objetivista de belo para a nova, subjetivista, marcou o abandono da busca para uma definição essencialista de belo.


“A beleza”, escreve Dieckmann, “já não é mais uma essência, uma característica objetiva, ou uma relação. Sua fundação está na resposta de nossos sentimentos, emoções, ou em nossas mentes”. Assim, o filósofo e matemático Blaise Pascal já dizia: “a própria moda e os países determinam aquilo a que se chama de beleza”. E David Hume concluia que “a beleza não é uma qualidade das coisas por si mesmas. Ela existe meramente na mente que as contempla, e cada mente percebe uma diferente beleza”. O prazer, continuava Hume, não somente é um necessário assistente da beleza, mas, sim, constitui sua própria essência. “Beauty”, passaram a dizer muitos, transformando o conceito em aforismo, “is in the eye of the beholder” (a beleza está no olhar de quem a contempla). Sucessivamente, na estética de Immanuel Kant, “belo é tudo quanto agrada desinteressadamente”.


Se a definição do belo aparecia então em discussão, ligada aos sujeitos tanto quanto aos objetos, também nas artes sua representação mudava. Se Leonardo da Vinci ainda declarava que a representação do belo era a “lei suprema da arte”, o escritor e crítico literário italiano Francesco de Sanctis, no século XIX, respondia que “a matéria da arte não é o belo ou o nobre, tudo é matéria de arte, tudo o que é vivo”.


“Em nossa civilização”, completa Migliaccio, “belo é uma noção cultural e histórica. A virada acontece com o movimento romântico. Baudelaire, em seus escritos sobre a arte, fornece uma boa definição moderna do belo: belo é um conceito eterno (todas as culturas dão valor a algo que consideram belo, ideal, desejável), porém tal conceito se realiza historicamente, em forma diferente em cada civilização”. Cada sociedade atribui beleza a produtos e qualidades diferentes. “Belo, então, é um conceito histórico realizado na arte”, continua o historiador da Unicamp. “História do belo e história da arte se identificam, por exemplo, na estética de Hegel, momento capital da reflexão sobre o tema. Romantismo e simbolismo identificam o belo com a expressão sincera e espontânea do sentimento individual por meio da criação da forma. Se aproximam, assim, ao conceito platônico de Michelangelo, porém buscando o transcendente na própria arte”.


Não surpreende então que poetas como Paul Valery possam brincar: “a definição de belo é fácil”, disse o francês, “é aquilo que desespera”. E não surpreende que, no século XX, um artista futurista como Filippo Marinetti pudesse dizer que “a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova, a beleza da velocidade”, acrescentando: “um automóvel de corrida com o seu capô ornado com grossos tubos semelhantes a serpentes de sopro explosivo …, um automóvel que ruge e parece correr sobre a metralha, é mais belo do que a Vitória de Samotrácia”.


Outro ponto de virada na concepção e representação do belo, continua Luciano Migliaccio, é dado pelas vanguardas históricas, particularmente o dadaísmo e o surrealismo. “Na civilização industrial, a beleza não está só nos produtos da arte tradicional”, explica. “O desejo de beleza, de algo que consideramos desejável, se reflete no design de um carro, em um maço de cigarros ou nos produtos da tecnologia”.


Na arte neo-dadaísmo e pop da década de 1960, comenta o pesquisador, a noção de arte e de beleza tradicional são postas em crise. São procurados novos parâmetros estéticos da civilização industrial, por meio da experimentação de novas linguagens, da crítica da idéia de autor, de pintura, de expressão. “Um exemplo disso é a recuperação do ready-made por Duchamp, que é um artista central para entender o novo conceito de beleza”. Tal busca não cessa de ser uma busca do sublime, do incompreensível, “porque depende, em boa parte”, conclui Migliaccio, “dos horizontes ainda incompreensíveis da ciência e da tecnologia, hoje capazes de manipular a própria criação natural”. A beleza, concluiria talvez ainda hoje Simone de Beauvoir, ainda é mais difícil de contar do que a felicidade.


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Reportagem
A estética da bossa nova

Por Mariana Garcia


Chega de saudade, com João Gilberto, ofereceu, pela primeira vez, um espelho aos jovens narcisos da zona sul do Rio de Janeiro. A avaliação é de Ruy Castro, autor do livro que tem o mesmo nome de uma das bossas mais famosas: Chega de saudade - a história e as histórias da bossa nova, editado pela Cia. das Letras e financiado pelo projeto Artista Residente da Unicamp. Muito mais que Copacabana, com Dick Farney, aquele novo jeito de cantar e tocar “ensolarava tudo”, segundo Castro. Não se desejava mais cantar o sangue e a dor. Ao invés de “Não, eu não posso lembrar que te amei” (Caminhemos, de Herivelto Martins), preferia-se a afirmativa de Vinícius: “Eu sei que vou te amar/ Por toda a minha vida eu vou te amar”.


O que se pensa quando se fala no Rio de Janeiro dos anos 1950? Um cenário natural e exuberante emoldurando tempos felizes? Segundo afirma, em uma crônica da época, Antônio Maria, jornalista e compositor de Ninguém me ama, ninguém me quer..., a noite de Copacabana era bem diferente disso. “Uma passarela de mulheres sem dono, pederastas, lésbicas, traficantes de maconha, cocainômanos e desordeiros da pior espécie”. E essa “passarela” dividia espaço com boates onde canções melancólicas, marchas tristes e boleros eram bastante apreciados.


Durante o dia, pelo contrário, grupos de jovens tomavam refresco e só se interessavam por Dick Farney (que, na verdade, foi registrado como Farnésio Dutra) e pelas novidades da música americana, principalmente os lançamentos de Frank Sinatra. Freqüentavam a famosa Murray, uma loja de discos e eletrodomésticos localizada na esquina das ruas Rodrigo Silva e Assembléia, no centro da cidade, para se encontrar e discutir música. Diferentes fã-clubes disputavam preferências.


Essa juventude não se identificava com os sambas-canção abolerados que se escutava na Rádio Nacional. As letras, os arranjos e as interpretações vocais eram vistos como excessivos. A temática recorrente, a da dor-de-cotovelo, não fazia sentido para eles. Na visão dos jovens universitários de classe média, que queriam se livrar do ensino de música tradicional (baseado no método de Mário Mascarenhas), o momento em que viviam pedia mais modernidade: menos acordeão, instrumento que era hegemônico na época, menos floreios vocais, menos brilhos e paetês.



Voz, banquinho e violão


Muitos implicaram com o movimento. O compositor de baião Humberto Teixeira chamou-a de “música para tapete”, em referência às reuniões no apartamento de Nara Leão.


Antônio Maria, que não gostou de ser identificado como músico do passado (tinha apenas 39 anos em 1960), também comprou briga. Sílvio Caldas, chamado a opinar, disse: “É uma manifestação passageira, própria dos moços que retratam o espírito de desobediência e má educação da época atual. Vai passar, porque carece da categoria que somente a autenticidade confere às coisas”.


José Estevam Gava, professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS) explica: “Aos nossos ouvidos hoje, expostos a uma vasta gama de estilos e tendências os mais disparatados, a bossa nova é coisa trivial e já assimilada como manifestação possível. Em 1958, não era”.


Entre 1958 e 1962, a bossa nova congregou procedimentos que formaram uma proposta original. Controlou a expressão do canto, reduziu o conjunto instrumental, enriqueceu a harmonia pela inclusão de notas estranhas aos acordes (as dissonâncias), negou o estrelismo solista do cantor, criou a estética “voz, banquinho e violão”, conjugando requinte com simplicidade e criando um novo nicho musical, intelectualizado, de “classe média” e de “bom gosto”.


Apenas em dois anos depois de lançada, Garota de Ipanema teve mais de quarenta gravações no Brasil e nos Estados Unidos. A inspiração para Tom e Vinícius foi Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, mais conhecida por Helô, uma menina de dezenove anos, de um metro e sessenta e nove, olhos verdes, cabelos lisos e longos que ia ao bar Veloso comprar cigarros para sua mãe.



Mistura

A beleza, reverenciada na música, era tema constante. Não somente a beleza feminina ou natural (o céu, o mar, o Corcovado etc) eram tratadas. A discussão estética era recorrente.


Santuza Naves, professora do Departamento de Sociologia da PUC do Rio de Janeiro, aponta que em Desafinado, por exemplo, “a pretexto de uma arenga sentimental, discute-se, na realidade, uma questão estética”.


Para o pesquisador José Estevam Gava, fica difícil falar de uma estética por trás de tudo, a não ser que se aprecie cada composição. “De fato, a estética da bossa nova vem sendo descrita ao longo do tempo, a partir de seus produtos e dos depoimentos de vários de seus integrantes. Percebe-se, entretanto, que não há muito consenso entre tais depoimentos, de modo que seria preciso analisar caso a caso. Talvez não haja uma estética, mas várias. Ainda que traços comuns sejam utilizados por todas”, diz Gava.


Segundo o professor, é difícil fixar uma estética muito definida, pois, como solução formal, a bossa nova durou pouco, logo sendo reelaborada por outros músicos que se aproveitaram dos “avanços” do estilo.



Influências

Para a professora Santuza Naves procedeu-se à uma estilização do samba, a partir da batida criada por João Gilberto e da harmonia minimalista de Tom Jobim. Sob seu ponto de vista, houve um processo de hibridização, “com a incorporação de elementos do cool jazz desenvolvido nos Estados Unidos e de experiências musicais consideradas inovadoras, como o bolero criado pelo mexicano Lucho Gatica que, como o cool jazz, era mais camerístico”.



Tom e a estrela francesa Mylène Démongeot


De acordo com José Estevam Gava, não há como ser muito categórico quanto ao grau de rompimento que a bossa nova efetuou no âmbito musical, porém, na sua avaliação, os bossanovistas mativeram o samba como matriz, dando-lhe uma roupagem nova. “Com a Bossa Nova o samba ficou mais “moderno”, menos batucado, menos exótico, mais palatável aos ouvidos europeus e norte-americanos. Houve importação de elementos e exportação de um produto novo”, diz.


Para ele, muito mais que do jazz, os elementos “impressionistas” que dão o toque especial, sutil e vago às composições, vieram da música erudita francesa do fim do século XIX e início do século XX.



Isso é bossa nova


O termo bossa nova não se limitou à música, também influenciou comportamentos. Passou a ser utilizado na rotulação de tudo o que era moderno: de aparelhos eletrônicos a roupas de banho.


José Estevam Gava, ao analisar a bossa nova nas artes gráficas, cita as capas dos discos da gravadora Elenco e algumas experiências inovadoras da revista O Cruzeiro como exemplos disso. “Em ambos os casos tanto nas capas da Elenco quanto na “bossa nova no jornalismo”, lançada pelo O Cruzeiro em 1960, a matriz construtivista ficou evidente na simplificação, na geometrização, no alto-contraste, na idéia de se comunicar com o menor número de elementos e recursos”, afirma Gava. “Vejo a bossa nova como expressão musical de nossos últimos suspiros modernistas, embalados que foram pelos poetas e pintores construtivistas e pelo sonho de uma sociedade planificada e harmônica, mais justa e solidária, livre dos recalques e amarguras do passado colonial retrógrado. Infelizmente, acabou sendo uma brevíssima época, talvez a única em que decidimos e pudemos ser absolutamente modernos”, declara o professor, que não esconde sua simpatia pelos clássicos da bossa nova.



Discussões estéticas


Depois de 1962, o “movimento” – entre aspas pois nunca houve um manifesto – aos poucos se desfez. O curto período de duração da bossa nova fez surgir rapidamente novas formas musicais que, como explica Gava, se apropriaram do estilo.


Nara Leão, em 1963, decidira trocar a bossa pelo morro, juntando-se a Zé Kéti e Nelson Cavaquinho. Carlos Lyra, separando-se de Ronaldo Bôscoli, já tinha se voltado à músicas de cunho político, envolvido que estava no Centro Popular de Cultura (CPC). O retorno aos sambistas “autênticos”, que ambos pregavam, dava sinais de que a “turminha do apartamento” era coisa do passado. Para eles, a música deveria tratar de assuntos considerados mais importantes, com mais realismo social. De outro lado, Menescal dizia que “música não foi feita para alertar coisa nenhuma”, pois, segundo ele, quem alertava era corneta de regimento.


Outros estilos derivaram da bossa nova. O que se desenvolveu no Beco das Garrafas, na rua Duvivier, em Copacabana, no início dos anos 1960, é um deles. Segundo Santuza Naves, a maneira intimista de interpretação (tanto vocal quanto instrumental) foi abandonada, vozes mais possantes foram privilegiadas no Beco, a percussão tornou-se mais viva e abandonou-se a vassourinha, que era um recurso típico dos bossanovistas usado para suavizar o som. Elis Regina surgiu ali, em meio ao hard bossa nova de Tamba Trio, Bossa Três, Quinteto Bottle’s etc.


No futuro, a Tropicália iria também reverenciar a estética criada por João Gilberto. Paradoxalmente, porque, ao mesmo tempo, incorporava o estilo excessivo rejeitado pelos bossanovistas – o “fino” e o “grosso”, como argumentou Augusto de Campos em O balanço da bossa –, explica Naves.


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Artigo
Sobre a beleza do feio e a sublimidade do mal

Por Márcio Seligmann-Silva


O ideal do homem “belo e bom”, kalos kai agathos, na clássica formulação grega, é parte integral da visão de mundo antiga: o mundo é visto como harmonia, beleza, em uma palavra, como cosmos, e esta beleza seria o resultado da relação deste cosmos com o mundo das Idéias. Nesta concepção clássica do homem haveria uma relação de semelhança entre a beleza externa e o traço moral da bondade. O belo é tido em altíssima conta e é visto como parte de um universo bom e harmônico. Na filosofia de Platão, a beleza serve para indicar e recordar o mundo das Idéias. Em Aristóteles, por sua vez, a beleza do corpo é vista como o fruto da adaptação a um fim. Além disso, para ele “as coisas agradáveis e belas são necessariamente boas”, “tudo o que produz a virtude é necessariamente belo”. Entre os bens ele conta a saúde e a beleza do corpo. O belo seria uma espécie de sinal da virtude.


Neste universo clássico, marcado pelo culto do belo e da harmonia, também havia espaço para a apresentação da dor e das paixões terríveis, como vemos nas tragédias. As tragédias gregas, para recordar uma conhecida formulação de Nietzsche, são justamente um misto de apolínio (culto do belo e das formas “perfeitas”) e de dionisíaco (irrupção de uma força descontrolada, ruptura dos limites). Já as figuras feias – que têm como paradigma o Tersites da Ilíada de Homero – foram normalmente descartadas da tragédia e relegadas ao campo do cômico. Segundo a regra do decoro das poéticas clássicas, não se poderia nas tragédias apresentar pessoas não-nobres, ou seja, que estivessem fora do campo da “beleza-nobre”. A tragédia era definida aristotelicamente como “a imitação de homens superiores”. Estes conceitos de beleza e de bondade traziam consigo uma visão de mundo total: era filosófica, estética, mas também política. Os membros das famílias nobres, os heróis guerreiros, seriam os portadores das características de beleza e bondade. Já a comédia, para Aristóteles, era a “imitação de homens inferiores”, sendo que o “cômico consiste em um defeito ou em uma feiúra que não causam nem dor nem destruição”. Um exemplo deste fato seria justamente a máscara cômica, “que é feia e disforme sem exprimir a dor”.


No campo da história da arte cristã esse modelo clássico será mantido com algumas adaptações: com a doutrina do pecado vinculado ao corpo, o belo torna-se extremamente sublimado (sobretudo na chamada Idade Média), mas a relação entre o belo e o bem fica mantida. O mal e o seu sinal, ou seja, o feio, eram reservados nas representações cristãs para a apresentação do pecado, da tentação, do que deve ser evitado. Isto vale tanto para as representações bíblicas do mal, como para as imagens sacras e para as obras literárias, de Dante na sua Divina comédia a John Milton no seu Paradise lost.


É ao longo do século XVIII que essa equação foi sendo aos poucos abalada. As teorias artísticas do Iluminismo podem ser vistas como típicas criações de uma era de transição. Um autor-chave desta concepção como G.E. Lessing vai retomar no seu livro Laocoonte, ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, de 1766 (publicado no Brasil pela Editora Iluminuras) as fórmulas clássicas aristotélicas, mas ao mesmo tempo insere importantes modificações nelas. Para Lessing cada modalidade das artes deveria adequar os objetos de sua imitação aos seus meios. Assim, caberia à literatura a imitação de ações, já as artes plásticas deveriam ter por objeto temas corpóreos, espaciais e não a narrativa de histórias. Seguindo esta máxima ele tenta explicar porque Homero, para ele o grande modelo do escritor, faz a descrição de Tersites na sua Ilíada. Lessing parte do pressuposto antigo de que os artistas devem imitar o belo para ensinar o bem. Como afirmava seu contemporâneo Johann Georg Sulzer em 1771: a essência da arte é a imitação do belo e a produção do sentimento de deleite. Mas este mesmo Sulzer reconhecia que o artista, para se manter fiel à natureza, deveria também apresentar o feio. Este seria um sinal emitido pelo artista “para evitar a entrada do mal” no coração dos espectadores. Portanto, um personagem como Tersites seria uma porta para a aparição do feio. Lessing acrescenta uma sutileza à sua leitura de Homero. Sua explicação é semiótica: Homero descreve Tersites em toda sua feiúra justamente porque sabia quais são os efeitos da descrição na literatura. Para ele “a feiúra exige muitas partes não apropriadas que nós devemos poder igualmente ver de uma só vez se nós quisermos sentir então o oposto do que a beleza nos faz sentir”. Através da descrição, Homero teria diluído o efeito da feiúra. O que nos importa aqui é a conclusão do autor: “aquilo que o poeta não pode usar por si mesmo, ele utiliza como um ingrediente para gerar e reforçar certos sentimentos mistos com os quais ele deve nos entreter na falta de sentimentos puramente agradáveis.”


A teoria dos “sentimentos mistos” introduziu ao longo do século XVIII uma paulatina superação da estética da imitação que estava intimamente ligada à manutenção da entronização clássica do belo. Mais e mais passa-se a valorizar uma retórica das emoções fortes, do impacto, em oposição à retórica racionalista que ainda submetia o campo das artes ao dever de ensinamento e educação do público (seguindo o mote da Arte poética de Horácio: “aut prodesse volunt aut delectare poetae”, “os poetas querem ser úteis ou deleitar”). Lessing na sua análise da descrição homérica de Tersites, assim como Sulzer na sua teoria do uso do feio como admoestação, ainda seguem esse preceito da arte como educadora. Mas eles já estavam conscientes do que se passava no campo do estético, ou seja, eles pressentiam o fim da era da valorização da arte em função de sua fidelidade para com a natureza-bela. Quando Lessing, no Laocoonte, conclui a sua análise de Tersites com as palavras: “se a feiúra inofensiva pode ser ridícula então a feiúra prejudicial é sempre terrível”, ele já indicava um outro conceito-chave na teoria da estética (e que sintomaticamente fica de fora do seu Laocoonte, no seu limite, por assim dizer), a saber, o conceito de “sublime”. (com relação a este conceito cf. os capítulos iniciais do meu livro O local da diferença, Editora 34, 2005; bem como o link para o artigo "Arte, dor e kátharsis ou variações sobre a arte de pintar o grito").


Este conceito de sublime tem uma origem na retórica clássica. O principal tratado antigo sobre esse tema é o Sobre o sublime, do primeiro século d.C., de um autor que ficou desconhecido para a posteridade. Neste tratado, o autor apresenta o sublime como o resultado de maior impacto que o poeta pode atingir. Ele valoriza aqui mais “a grandeza com alguns defeitos” do que “a mediocridade correta”. Trata-se da poética da comoção em oposição à da frieza. Para o autor anônimo “o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso”, ele gera o arrebatamento por meio de uma “força irresistível”. No século XVIII este conceito foi amplamente debatido. Ele foi apresentado por alguns autores como sendo uma espécie de ápice do belo. Para outros, no entanto, o sublime era o oposto do belo, assim como na visão clássica de Lessing o cômico era o oposto do trágico. Mas o interessante desse novo conceito de sublime que nasce então é que ele justamente supera essa divisão entre o cômico e o trágico. Se, como vimos, Lessing via na feiúra inofensiva o ridículo, ele anunciava também que existe uma feiúra prejudicial que seria sempre terrível. Na primeira versão de seu texto ele acrescentou a essa definição da feiúra prejudicial terrível que ela seria “sublime”.


Edmond Burke foi o principal teórico desta noção de sublime no século XVIII. No seu tratado de 1757 sobre este conceito ele o definiu de um modo que não deixa dúvidas quanto à sua proximidade com o conceito de trágico: “As paixões que pertencem à auto-preservação relacionam-se com a dor e o perigo; elas são simplesmente doloridas quando as suas causas afetam-nos de modo imediato; elas provocam deleite quando temos uma idéia da dor e do perigo, sem, no entanto, encontrarmo-nos em tais circunstâncias. ... Tudo o que excita tal deleite eu denomino de sublime. As paixões pertencentes à auto-preservação são as mais fortes de todas as paixões”. O feio ao invés de ser contido no campo do cômico ou da descrição que o atenua, é tratado por Burke como um dos meios de gerar essa emoção radical do sublime. Esse conceito teve ampla recepção entre os principais teóricos das artes do século: Diderot, Moses Mendelssohn, Kant, entre outros, vão tentar esmiuçar essa nova concepção de deleite estético ligada à exploração da dor, do perigo, do feio, em uma palavra, das manifestações da morte e da nossa pequenez diante dela.


Diderot, em uma carta a Sophie Volland, caracteriza esse conceito de modo a destacar o elemento “misto” dessa paixão, que põe lado a lado o belo (normalmente representado na estética do XVIII pela mulher) e as aparições da morte (significadas normalmente pelo homem): “Efeitos poderosos sempre nascem da mistura do voluptuoso e do terrível, por exemplo, uma bela mulher semi-nua oferecendo-nos uma poção deliciosa nas caveiras sangrentas de nossos inimigos. Este é o modelo de tudo que seja sublime. Temas como este, que fazem a nossa alma derreter de prazer e tremer de medo. A combinação destes sentimentos mergulha-nos em um estado extraordinário e é a marca do sublime que ele nos abale de um modo excepcional”. Aqui fica claro em que medida o sublime mistura temas ligados à beleza, ao feio, ao terror e ao medo. Nele sexo e morte se encontram. Uma nova concepção de fantástico também se anuncia aqui. Os romances góticos, com destaque para o Frankenstein de Mary Shelley, assim como o gênero da narrativa fantástica de um modo geral, é uma decorrência dessa estética do sublime. No século XIX Goya, Caspar David Friedrich, Turner, Arnold Böklin e autores como Victor Hugo (autor do famoso texto “Do Grotesco e do sublime”), E.T.A. Hoffman, Adalbert von Chamisso, Baudelaire (não apenas autor das Flores do mal, mas também o grande teórico da caricatura e do cômico), Stevenson, Nietzsche, entre outros, deram continuidade a esta tradição do sublime. No século XX esse conceito vai ser central na teoria de Walter Benjamin, Adorno, Jean François Lyotard, entre outros. Bataille, Freud e a releitura destes autores por Julia Kristeva levaram a uma revisão do conceito de sublime a partir dos anos 1980, que passa a ser diferenciado da noção de “abjeto”. Na teoria do século XVIII esse conceito de abjeto era pensado ainda sob o signo do conceito de “asqueroso”. Para Lessing ele representava o limite que deveria ficar de fora do campo das artes. Agora podemos dizer que ocorre mais ou menos o contrário: o “belo” foi expulso do campo do estético. Agora acreditamos mais na “beleza” do feio e na “sublimidade” do mal.


* Márcio Seligmann-Silva é professor do Departamento de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp.


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Artigo
Belo: a breve história de uma idéia

Por Taisa Helena P. Palhares


Se alguém em nossos dias quisesse descobrir na produção artística contemporânea a manifestação dos conceitos de beleza forjados por nossa cultura, sua tarefa com certeza seria malograda. Sua busca teria maior sucesso se analisasse os cartazes publicitários, as revistas, as produções televisivas, a moda, ou seja, se recorresse a toda produção do mass media, pois há muito tempo a Arte deixou de ter a supremacia neste assunto. Tentar alcançar hoje uma noção mais ou menos nítida de Belo não implica, como na época moderna, voltar-se para as artes.


Essa situação revela algo que na maior parte do tempo é esquecido pelo senso comum: tanto a Arte quanto o Belo são categorias históricas. E mais, a noção tão difundida de Belas-Artes só se consolida nos século XVIII e XIX. No mundo antigo, a arte é, enquanto techné, qualquer atividade humana que implica um determinado saber fazer ordenado, uma habilidade característica para execução de uma coisa. O que distingue, por exemplo, a pintura da agricultura neste caso é que a primeira é uma arte da imitação, enquanto a segunda é produtiva. Para Platão, quem imita não possui um saber propriamente dito, logo sua arte nem será verdadeiramente uma arte. Além disso, o pintor e o escultor imitam sobretudo a aparência das coisas, dos seres vivos, da natureza. Eles produzem uma representação distorcida daquilo que em si já é uma imagem das Idéias, cujo conhecimento só pode se dar mediante o pensamento racional. Como conseqüência, em sua república ideal o filósofo grego resolve banir todos os artistas imitativos.


Por outro lado, durante a Antigüidade e Idade Média se constrói uma rica metafísica do Belo que será fundamental para compreensão do Belo artístico a partir do Renascimento. Sob influência do pensamento de Pitágoras, para quem o princípio de todas as coisas é o número, o Belo será associado a conceitos como ordem, proporção, harmonia, simetria e forma. Do mesmo modo que um corpo belo ou uma bela flor revelam a ordenação matemática do mundo, o belo na arte deve guiar-se pela proporção matemática e pela simetria. Para tradição pitagórica, o exemplo a ser seguido é o do belo natural: a harmonia do cosmo e da natureza.


Uma outra relação importante efetuada pelos antigos é a associação entre o conceito de Belo e as noções de Verdade e Bem. Nesse sentido, será belo tudo o que é verdadeiro, justo e bom. Para o pensamento cristão, Deus como a Verdade e o Bem em si, é também identificado ao Belo em si. A corporificação da beleza no mundo nada mais é do que a manifestação da divindade. Essas breves observações apontam para o valor ontológico do belo no pensamento pré-moderno. A qualificação estética do belo representa, na história ocidental das idéias, uma desvalorização de sua valência original.



Rafael: Nossa Senhora Sistina", 1513-14


Contudo, há de se notar que a exigência de observação do belo natural como origem do belo artístico já vinha sendo questionada por alguns pensadores. Durante o Renascimento, torna-se muito popular e comentada a seguinte história sobre o pintor Zêuxis: tendo de representar Helena, ele reúne cinco jovens belas e escolhe de cada uma os aspectos mais belos, compondo-os numa imagem que não tem equivalência na natureza. Por outro lado, Cícero explica que Fídias, ao esculpir seu Zeus, não se baseava em um indivíduo real, mas numa idéia de beleza presente em sua mente. Segundo Plotino, as artes não imitam as coisas visíveis, antes se elevam às formas ideais, das quais decorre a própria natureza. As discussões sobre essas histórias indicam o movimento, fundamental para compreender a concepção de Arte do Renascimento, de valorização da atividade artística como cosa mentale, como disse Leornado da Vinci, em primeiro lugar, e da relação intrínseca entre belo e arte. Na verdade, a partir de agora, o artista deve se basear em uma Idea, uma forma a priori, ou no Cânone, obra na qual se encarnam todas as regras da arte, como uma espécie de lei. A produção pictórica de Rafael é o exemplo mais cabal desses pensamentos, o grande arquétipo de todo Classicismo posterior, no qual vingará de vez o conceito de Belo Ideal (Rafael, Nossa Senhora Sistina, 1513-14, Gemäldegalerie, Dresden).


Uma das mais importantes transformações na história do pensamento sobre o belo artístico no Ocidente ocorre no final do século XVIII com o livro Crítica da Faculdade do Juízo (1790) do filósofo Immanuel Kant. Nele, Kant dá forma cabal a uma nova sensibilidade que tentava entender o papel do gosto no julgamento artístico. Neste momento, o belo, que antes era um atributo das coisas ou das obras de arte, passa a ser a experiência de um prazer desinteressado. Essa guinada subjetiva do conceito irá alimentar grande parte da estética e da arte modernas. Ela representa também o ocaso definitivo das poéticas dogmáticas e seus cânones acadêmicos.

Rembrandt - Auto-retrato, 1659


Paralelamente, outros valores conquistam legitimidade no campo artístico. Tudo o que parecia ter sido condenado pelo ideal clássico começa a receber uma nova avaliação: o informe, o grotesco, o estranho, o tenebroso, o feio, o diferente, o ilimitado, o desproporcional, o obscuro são defendidos enquanto possíveis valores estéticos. O Belo vai perdendo espaço para noção de Sublime no espírito dos artistas. Não que esses atributos tenham ficado ausentes da história da arte até então. Basta pensarmos nos movimentos maneirista e barroco, em Caravaggio e Rembrandt, para citarmos dois exemplos mais conhecidos. Ambos transgrediram as convenções e costumes em suas figuras realistas muitas vezes disformes nas quais se reconhece uma busca da verdade e o desprezo pelo ideal canônico de beleza (imagens). Não por acaso, eles estabeleceram afinidades com o trabalho dos pintores do século XIX.


É exatamente na segunda metade daquele século que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche irá teorizar, em O Nascimento da tragédia no espírito da música, sobre a duplicidade constitutiva da cultura ocidental. Para ele, já no espírito grego, coloca-se a oposição entre um impulso comtemplativo-formal (o apolíneo) e um doloroso e obscuro impulso dissoluto-extático (o dionisíaco). No mesmo momento, o Romantismo procura, no que provavelmente representa a última grande teorização sobre o conceito de Belo artístico, acolher numa espécie de co-presença essas oposições. Para concepção romântica de beleza finito e infinito, vida e morte, eterno e transitório, totalidade e fragmento, razão e coração são qualidades que devem conviver em dinamismo constante na obra de arte. O poeta e crítico de arte francês Charles Baudelaire é quem de forma lapidar apresenta essa nova concepção de beleza no ensaio O pintor da vida moderna: “O belo é sempre e inevitavelmente uma dupla composição, ainda que a impressão que ele produz seja uma só (...) é feito de um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é extremamente difícil de ser determinada, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, vamos dizer assim, sucessivamente ou tudo junto, a época, a moda, a moral e a paixão. Sem esse segundo elemento, que representa algo como a cobertura divertida, saltitante, aperitiva, do divino bolo, o primeiro elemento seria indigesto, impossível de ser apreciado, não adaptado e não apropriado à natureza humana. Duvido que se encontre uma amostra qualquer de beleza que não possua esses dois elementos”. Pois, “o belo é sempre bizarro”, ele “contém sempre um pouco de estranheza, que o faz ser particularmente Belo”, afirma o poeta em outro momento.


Matisse: Dança (II), 1910


O pintor E. Manet será o responsável por dar corpo a essa noção de beleza em sua Vênus moderna, Olympia, pintada em 1863. Provocador, Manet retoma o cânone clássico da Vênus de Urbino de Ticiano para metamorfoseá-la na figura de uma mulher venal. Nessa tela, a beleza desce de seu céu metafísico, transcendente, para habitar as coisas mais prosaicas e mundanas. Obra-manifesto, Olympia é definitivamente o maior ícone da beleza moderna.


No século XX, o conceito de belo é definitivamente desvalorizado no âmbito da arte (e provavelmente por esse motivo tenha migrado para outras “regiões”). O que não significa que o público tenha abdicado completamente de uma noção conservadora de beleza em seus julgamentos estéticos. Na verdade, é conhecida a péssima recepção que as pinturas de H. Matisse encontravam em sua época. Após a primeira apresentação pública de uma de suas obras-primas, Dança (II) (1910), a reação foi de espanto e horror, sendo que os adjetivos utilizados para classificá-la foram: primitiva, grotesca, diabólica, bárbara e canibalesca (naturalmente em sentido pejorativo).

Matthew Barney - Cremaster 4, 1994


Evidentemente, uma história de mais de dois mil anos não pode ser apagada da noite para o dia. Quando afirmamos que o Belo se enfraquece enquanto valor estético ou idéia reguladora não quer dizer que ele não esteja presente aqui e acolá. Contudo, o que parece não existir é uma nova concepção, algo que seja próprio do momento contemporâneo. O que há sim, é uma restituição de algumas das idéias forjadas no decorrer da história. Uma espécie de sobrevida que irrompe nos locais os mais inesperados (pensa-se aqui, por exemplo, na arte abstrato-geométrica de Mondrian). Voltando ao nosso inquiridor inicial, talvez o grande desafio fosse refletir, a partir da produção exemplar de um artista contemporâneo como é o caso do norte-americano Matthew Barney, sobre os caminhos às vezes inusuais da sensibilidade atual, habituada ao poder de recriação e modificação sem limites das formas naturais, neste caso do próprio corpo humano.


* Taisa Helena P. Palhares é graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde desenvolve tese de doutoramento desde 2005. Recentemente publicou o livro Aura: a crise da arte em Walter Benjamin (Editora Barracuda, Fapesp, 2006).


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Artigo
Dormindo com o inimigo. Mulher, feiúra e a busca do corpo perfeito

Por Joana V. Novaes e Junia de Vilhena


O primeiro dia de um obeso numa academia de ginástica é sempre um evento. O meu, por exemplo, foi assim: meu marido precisou ficar meia hora dentro do carro, em frente à academia, me convencendo a entrar. Eu pensei, só tem gostosona lá dentro, o que é que eu vou fazer nesse lugar?


No filme Tudo Sobre Minha Mãe, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, ilustra bem a idéia do sujeito que deseja mudar sua aparência para ficar cada vez mais único, de acordo com o que queria parecer. Assim, o personagem do filme, um transexual chamado Agrado, que já havia realizado inúmeras intervenções plásticas, dizia: Uma pessoa pode se dizer mais autêntica quanto mais se aproxima de como sonhou ser.


Mas com o que sonha grande parte das mulheres em nossos tempos? A gordura acabou com minha vida, dizia uma entrevistada, em uma matéria da Folha de S. Paulo. Cadernos de saúde, academias de ginástica, lojinhas de produtos naturais e cirurgias plásticas cada vez mais numerosas, parecem nos dizer que a moda do corpo magro, esbelto, sarado e cuidado chegou para ficar.


Mais ainda –, ai de quem desses parâmetros se afastar!!! Em recentes pesquisas que vimos realizando e cujas falas reproduziremos ao longo deste trabalho, pudemos observar, não apenas o caráter impositivo de uma estética que nada tem a ver com o biotipo brasileiro, como o profundo preconceito que as mulheres feias (leia-se gordas) sofrem.



The letter – Botero 1989


Sem caráter, sem força de vontade e vistas como desleixadas, a anatomia feminina deixou de ser um destino para ser uma questão de disciplina: se não conseguimos agenciar nossos corpos, como seremos capazes de agenciar nossas vidas ou nossos empregos? Recente pesquisa feita pelo New York Times aponta para uma enorme diferença salarial (quando são contratadas!) entre mulheres bonitas e feias.


A moralização do corpo feminino, como aponta Baudrillard em seu livro A sociedade de consumo, nos leva a encarar a ditadura da beleza, da magreza e da saúde como se fosse algo da ordem de uma escolha pessoal. Deixam-se de lado todos os mecanismos de regulação social presentes em nossa sociedade, que transformam o corpo, cada vez mais, em uma prisão ou em um inimigo a ser constantemente domado.


Malhado, como se malha o ferro, não é sem razão que tal expressão é utilizada nas academias de ginástica, na tentativa de adquirir a estética desejada. Tais técnicas, apreendidas, inicialmente, como uma disciplina, com o passar do tempo são incorporadas ao cotidiano do sujeito e sem que o mesmo perceba, acaba por reproduzi-las, sem que haja uma dimensão crítica ou reflexiva sobre essas atividades/comportamentos: a Pastoral do suor de que nos fala Jean-Jacques Courtine.


Se a contemporaneidade pode ser definida exatamente pela sua liquidez, como aponta ZygmuntBaumann em vários de seus escritos, ou pela sua evanescência – tudo que é sólido desmancha no ar, o culto ao corpo, demanda do sujeito exatamente o inverso – permanência e imutabilidade.


Como sabemos, a regulação social dos padrões estéticos sofreu variações históricas em torno dos ideais de beleza de algumas décadas atrás, até à atualidade, no qual seu imperativo exige a perfeição das formas conseguida por meio de inúmeras intervenções corporais e cujo exemplo mais representativo são as modelos e atrizes.


Todo esse percurso histórico deixa bastante clara a ênfase que vem sendo dada, cada vez mais, às práticas de culto ao corpo, bem como às técnicas de aperfeiçoamento da imagem corporal. As interferências, transformações e todos os métodos de disciplinização do corpo, acompanhados da moralização da beleza, buscam esse caráter de permanência do belo corporal.


Trata-se dessa forma, de comer com a disciplina imposta pela nutricionista e, num segundo momento, anular os efeitos da ingestão, através de rigorosos exercícios físicos. Carregado de um sentimento de culpa infalível, fruto das advertências de ambos profissionais, nas quais comer não deve ser, senão, o ato de alimentar-se, destitui-se, dessa forma, a alimentação de toda a sua dimensão de prazer, fazendo com que o sujeito acredite que deva alimentar-se do olhar que equivale à aprovação social e que, por conseqüência, legitima e estimula tais práticas na obtenção desse corpo.


O que é ser bela? Acho que a sociedade nos cobra e nos sufoca demais com isso. Gostaria de dar menos valor à aparência, mas não consigo, pois vivo num mundo onde os valores estão em segundo plano e o físico em primeiro. Se eu quiser conquistar algo aqui neste mundo, sem dúvida nenhuma, a minha aparência influenciará 90%. É triste, mas é a mais pura verdade, pois comprovei isso na pele – precisei me livrar de todo o meu recheio.


As técnicas de reversão do processo de envelhecimento nos remetem ao tão sonhado projeto evolucionista do corpo. Atingida a sua maturidade, o corpo estaria livre de todas as enfermidades e intempéries – , o corpo anseia por não mais fenecer. A tentativa pós-moderna parece ser a subversão da condição humana de mortal.


Não se trata, certamente, de negar os avanços da ciência e, sim, de estar atento à dimensão de controle e regulação de nossos corpos. Como jocosamente aponta Ximenes Braga no jornal O Globo: Mundo afora, o estado quer controlar cada vez mais o que as pessoas fazem consigo mesmas, e impedir crianças de engordar é mais um degrau de ridículo nesse Zeitgeist. Qual o próximo passo? A criminalização da aspirina, do sushi e do steak tartar?


Mas retornemos à nossa afirmação acerca do preconceito contra a gordura – estando aí incluído até a gravidez.


Historicamente, à mulher é associado o binômio beleza e fertilidade, estando o último aspecto referido a tudo que difere a sua anatomia da masculina, ou seja, aquilo que em suas entranhas é produzido. Entretanto, a cultura atual parece demonstrar que nem mesmo a gravidez justifica as marcas de envelhecimento deixadas pela natureza, logo, os traços remanescentes do processo da maternidade devem ser extirpados do corpo feminino.


Ressignificados e afastados do ideal de juventude, esses traços são interpretados pela cultura como feios e, portanto, devem ser eliminados, reiterando mais uma vez a máxima de que só é feio quem quer. Nesse sentido, vale lembrar a propaganda da linha de cosméticos Helena Rubinstein: Nos tempos atuais, é imperdoável que a gravidez faça com que a mulher perca a sua silhueta… A mulher deve ter um belo corpo para mostrar após os filhos estarem criados.


O fenômeno observado, tal qual descrito, parece indicar um corpo análogo ao corpo andrógino referido por Baudrillard, no qual houve o apagamento dos signos de diferença. Não é à toa, que a maioria de nossas entrevistadas associa a necessidade da cirurgia à gravidez e aos processos ulteriores de maternagem, como a amamentação, e justificam seu desejo de anulação dessas marcas dizendo tratar-se de um excesso desnecessário. Ironicamente, a amamentação é o exemplo prototípico de um excesso interno do corpo feminino que produz a satisfação do bebê.


Depois da gravidez mudou tudo... os peitos desabaram. Já ouviu falar nas termas de Caracalla?


Não adianta, porque quando você engravida as marcas estão lá mesmo – então por que não consertar?


De que corpo, então, estão falando essas mulheres? Será um corpo sem marcas ou inscrições: um corpo em branco? Quem ou o que contaria então a sua história? Será ousado pensar tratar-se da valorização de um corpo oco? Como um corpo virtual, que só possui duas dimensões, aquelas que os olhos alcançam. Ou ainda, como o corpo publicitário: para sempre diante do seu olhar!


Freqüentemente associado ao corpo que “atrai”, a cirurgia é buscada como uma forma de se manter atraente aos olhos do outro. Permanecer jovem, seduzir, manter o interesse do companheiro são justificativas muitas vezes empregadas. Não é de se espantar que muitas vezes ninguém possa tocar esse corpo. Ele está/existe apenas para a visão, ou seja, para ser admirado – os seios Pão de Açúcar nas palavras de uma entrevistada.


Helmut Newton – calendar january 2001

Frases que são proferidas com o intuito de estimular ou mesmo reforçar positivamente as pessoas gordas a persistirem com dietas e/ou rotina de exercícios, ilustram bem a idéia do corpo magro como um ideal a ser atingido, bem como a representação social do gordo como um imperfeito que deve ser reeducado, de forma eficiente à moralização do bom comportamento. Neste sentido, nada espelha melhor a moral do culto ao corpo do que a disciplina, a perseverança e a obstinação.


Vejamos alguns exemplos ouvidos em academias: vai gordinha que você chega lá ou, no caso de demonstração de cansaço, o seu corpo é um reflexo do seu comportamento – se for paradona, preguiçosa do tipo que só gosta de comer e dormir, fatalmente será gorda, caidaça e toda flácida. (fala de um personal trainer).


Finalmente, um dos relatos que melhor afirma a idéia da exclusão social infligida às mulheres gordas - a negação da sexualidade:


Um amigo meu uma vez me disse: se quiser ser desejada emagreça, pois é óbvio que ninguém vai olhar para gordinha “cocota” e sim para a saradona “cascuda”.


Parece que a fala do amigo diz à nossa entrevistada que ela é menos mulher por ser gorda, logo, feia. Ser gorda lança-a na condição de apenas amiga dos homens, ou seja, só as magras podem exercer sua feminilidade plenamente, pois conseguem despertar o desejo dos “carinhas”. Feiúra é índice de menos-ser.


Contudo, não se trata, como alguns colegas apontam, de reduzir a busca por um corpo ideal, a uma falha, uma falta, um defeito, uma patologia ou um processo de alienação. Trata-se, a nosso ver, de poder pensar por quais processos discursivos e de socialização estas e outras práticas fortemente instituídas e difundidas colaboraram para anular as resistências ao que nelas existe de opressão.


É preciso pensar na forma pela qual os agentes interiorizam/incorporam o discurso dominante e na sua conseqüente reprodução no seio da sociedade. É importante notar que os mecanismos que regem a dinâmica das relações, tais como sujeição e dominação, obediência e imposição, não devem ser encarados como algo que vem de cima para baixo, e sim como um processo dialético, horizontal, encenado por todos os membros de uma sociedade, assimilado como uma tática inerente ao jogo, e que permeia todos os âmbitos e espaços indo da família à escola, dos locais de trabalho às instituições públicas, retornando ao convívio social.


Por isso, torna-se fundamental refletir acerca da sociedade de imagens na qual vivemos. O corpo, ao entrar em cena, e ocupar agora um espaço que dá ao indivíduo a visibilidade necessária aos poderes disciplinares, torna-se o principal alvo das estratégias de controle. Por essa mesma razão ele deve ser pensado e visto como uma possibilidade de resistência.


Este mundo é feito para os magros, jovens, brancos, caucasianos e sem nenhum tipo de deficiência física. Quem não pertencer a um desses grupos, com certeza ficará à margem sofrendo inúmeros preconceitos.


* Joana V. Novaes é doutora em psicologia clínica. Coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – Lipis da PUC-Rio. E-mail joananovaes@terra.com.br.


* Junia de Vilhena é doutora em psicologia clínica, é psicanalista, professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio; coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social – Lipis da PUC-Rio e pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. E-mail vilhena@psi.puc-rio.br


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Artigo
Branca, preta, híbrida: qual é a cor da beleza na propaganda brasileira hoje?

Por Ilana Strozenberg


Não há dúvida que, embora ainda minoritária, a presença de personagens negros na propaganda brasileira, adquiriu, nos últimos anos, uma importância inédita. As imagens publicitárias que povoam nosso cotidiano – veiculadas na mídia impressa e audiovisual, ou disseminadas na paisagem urbana através de painéis luminosos, outdoors, e afixadas às carrocerias dos transportes coletivos – evidenciam uma presença crescente de personagens de cor. Em que medida isso pode significar uma mudança na percepção da diferença racial, no contexto de uma cultura marcada pela experiência histórica da escravidão, fundada nos valores da hierarquia e do preconceito de cor?


Em toda a história da propaganda no Brasil, até meados da década de 80 do século passado, negros e mestiços só apareciam em funções subalternas – como escravos, serviçais e trabalhadores braçais de vários tipos. Mesmo nesses casos, sua presença é secundária, como complementos do cenário, e nunca como beneficiários diretos do produto. Por exemplo, a empregada doméstica que garante a qualidade da farinha comprada pela patroa, ou o chofer que dá maior status ao carro cuja porta abre para o patrão (branco, naturalmente). A única exceção a essa regra são os anúncios dirigidos especificamente para negros, principalmente cosméticos e fortificantes. Estes, no entanto, só fazem reforçar uma imagem do corpo negro como feio e precário, um corpo, enfim, cuja natureza deve ser melhorada e corrigida. É o caso dos anúncios de hené, que torna liso e “bom” o cabelo crespo e “ruim”, e os de vermífugos e fortificantes que, como na clássica peça criada por Monteiro Lobato para o Biotônico Fontoura, oferecem uma solução para as agruras do maltratado e mal nutrido Jeca Tatu.


Modelos negros ocupam cada vez mais espaço na propaganda brasileira


Há cerca de 20 anos atrás, em 1984, a atriz e cantora Zezé Mota fundou uma organização para criar maiores oportunidades para modelos e atores negros: o Centro de Informação e Documentação do Artista Negro (Cidan). Na época, a iniciativa era pioneira e ousadamente oportuna. Naquele momento, o ambiente midiático de um modo geral e, talvez, ainda mais especificamente, o meio publicitário, não apenas não demonstrava nenhum interesse pelo uso desses profissionais, como lhe era, muitas vezes, francamente hostil.

O argumento central era que o discurso da propaganda, para ser eficaz, deveria provocar, no público consumidor, projeções identitárias “para cima”. Assim, na medida em que, no Brasil, predominava o ideal de beleza branco europeu – cabelos lisos, de preferência louros, olhos claros, traços finos –, o uso de negros não só desvalorizaria o produto como provocaria um sentimento de rejeição, tanto por parte de consumidores brancos quanto dos próprios negros, na medida em que, entre esses, prevalecia o ideal de embranquecimento. Por outro lado, a associação entre cor da pele e condição sócio-econômica era mais uma justificativa a favor da discriminação.


Hoje, o panorama já não é esse. Cada vez mais, rostos e corpos escuros ocupam lugar de destaque na mídia para vender os mais diversos produtos e serviços – moda, alimentos, remédios, acessórios esportivos, eletrodomésticos, cartões de banco, cursos universitários e de pós-graduação –, a um público sem característica de cor, e, muitas vezes, de poder aquisitivo elevado. No papel de protagonistas ou simplesmente inseridos num grupo de pessoas etnicamente distintas, exibindo ou não uma estética explicitamente “afro” , os corpos dos modelos negros já não apontam necessariamente para uma condição de inferioridade de qualquer ordem. Pelo contrário, a diferença de cor aparece, agora, muitas vezes, como uma característica positiva, uma diferença que, ao invés de retirar, agrega prestígio e sedução ao que está sendo oferecido ao consumo da sociedade.


Outro aspecto relevante é o surgimento de um novo mercado de produtos cosméticos “étnicos” – cremes, shampoos, sabonetes – destinados especificamente às “pessoas de cor”. A Gessy Lever, fabricante do sabonete Lux, que se tornou famoso através da campanha que afirmava ser o preferido de “9 entre 10 estrelas do cinema” (todas louras) lançou, há cerca de dois anos, a sua versão Lux Pérola Negra. E o que Lux Pérola Negra promete à Isabel Filardis – atriz negra da TV Globo muito popular pela sua participação em novelas –, e, por identificação, a todos os que possuem a pele escura, é cuidar dessa pele, preservá-la. Isto é: seu objetivo não é torná-la mais clara, e sim ainda mais negra e, com isso, mais bela e sedutora. Um ideal a que se pode aspirar.


As mudanças no paradigma estético tradicional no campo da mídia, entretanto, não se restringe a uma valorização de uma beleza negra, alcançando também o próprio ideal de beleza branca. Como evidenciam os lábios grossos, a tez morena e os olhos amendoados de alguns dos modelos brasileiros de maior prestígio, este já não parece tão pautado numa aparência “puramente” européia, e valoriza traços que denunciam assumidamente a mestiçagem. Com alguma ousadia, se pode levantar a hipótese de que se verifica, aqui, uma valorização inversa à do branqueamento. É a “branquitude” que parece se valorizar quando incorpora traços atribuídos a outros biotipos, seja do negro ou do índio. A declaração de um executivo de uma das maiores agências internacionais de modelos estabelecidas no Brasil, Elite, ao explicar o enorme sucesso de Raica, a modelo brasileira que é a atual namorada de Ronaldo Fenômeno, no exterior, deixa isso bem claro:


“A Raica tem uma coisa bem índia, é morena, tem uma coisa bem Brasil. É até a primeira top brasileira que tem uma cara de brasileira mesmo, que o mercado internacional queria muito. Acho que, do ponto de vista do conhecimento do público, a maior top que se viu aí antes dela, nos últimos tempos, foi a Shirley Mallman, que era uma alemã nítida, né?”


Não há dúvida, de que as mudanças de comportamento relacionadas ao mercado têm um pé na realidade sócio-econômica. O surgimento e crescimento de uma classe média negra, ou seja, de um mercado consumidor negro, é assunto que, recentemente, tem merecido espaço não só nas páginas de revistas dirigidas aos profissionais de propaganda e marketing, mas vem sendo objeto de destaque também em revistas de informação geral como Veja, a de maior circulação no país.


Com o nome sugestivo de “Qual é o pente que te penteia? perfil do consumidor negro no Brasil”, uma pesquisa realizada em 1996, pela agência paulista Grottera, revelou a existência segmento com potencial de consumo em expansão. No mesmo momento, estava sendo lançada, em São Paulo, pela editora Símbolo, a revista Raça, uma publicação ilustrada bem editada, a cores, voltada para o público negro. Um grande sucesso de venda nas suas primeiras edições, a revista Raça tem sido, desde então, objeto de grandes polêmicas e alvo de severas críticas de uma parte dos militantes do Movimento Negro, que a consideram excessivamente voltada para o consumo, em detrimento de questões políticas mais urgentes. Do ponto de vista dos defensores da revista, por outro lado, o consumo e a estética são, na sociedade contemporânea, instrumentos de luta pela cidadania e, portanto, elementos de uma ação política estratégica. Dessa perspectiva, produzir mudanças no imaginário social é um passo decisivo para provocar mudanças nos processos de construção de identidades e, portanto, das relações de poder que se estabelecem na prática.


Seja qual for a opinião que se tenha a respeito da Raça, entretanto, é inegável que essa revista, apesar das várias crises editoriais e da queda nas vendas que levaram à redução de sua periodicidade, foi um marco na divulgação de uma estética negra positivamente valorizada, e isso não apenas para o seu público alvo. A própria pesquisa da Grottera, por exemplo, foi um projeto desenvolvido em conjunto com a editora.


Embora predomine, entre a maioria dos profissionais da propaganda, uma perspectiva marcadamente utilitarista, que atribui o crescimento do mercado de produtos étnicos e a presença cada vez mais evidente de negros na propaganda ao surgimento e expansão de uma classe média negra no Brasil, esse não é o seu único argumento. Um segundo argumento, de importância central, é o fato de que a presença do negro agrega um valor específico ao produto. Esse valor pode ser nomeado como modernidade.


Se a cor da estética publicitária contemporânea é híbrida, a cor da modernidade, enquanto atitude política é plural. Seu significado está associado ao processo de emergência de novas identidades sociais – definidas principalmente a partir dos critérios de gênero, raça e etnicidade – que deram lugar à proliferação de movimentos sociais pós-anos 60. A valorização das diferenças e a afirmação da cidadania através da igualdade universal de direitos e deveres, são seus parâmetros centrais.


A globalização da economia e dos fluxos de comunicação desempenhou, com certeza, um papel importante na disseminação dessas idéias. Hoje, a presença de negros na propaganda é, muitas vezes, “exigência das multinacionais”. Desse ponto de vista, o uso de negros na propaganda não visa atrair consumidores negros, e sim despertar a simpatia dos brancos para a marca da empresa que, com isso, estaria dando provas de ser uma empresa dotada de consciência social. Ou, para usar uma expressão muito em voga, de ser uma “empresa cidadã”, porque valoriza e respeita as diferenças.


Um terceiro argumento para as mudanças que vêm ocorrendo no trato da diferença de cor na propaganda brasileira é que são, assim como a defesa do sistema de cotas, o resultado das reivindicações e denúncias das organizações do Movimento Negro, que, nos últimos anos, ganharam espaço nos meios de comunicação.



Revista dominical do Jornal do Brasil

Novembro de 2002


Em que medida, então, a propaganda, ao divulgar padrões de beleza mais plurais e inclusivos, teria algum papel a desempenhar na construção de relações raciais mais igualitárias e equitativas? Como os meios de comunicação de um modo geral, a propaganda não cria comportamentos ou valores. Atuando no campo da cultura, e suas diferentes expressões, ela capta algumas tendências e as dissemina. Assim, sua atuação pode ou reforçar preconceitos – reproduzindo os estereótipos dominantes no discurso social; ou promover e fortalecer novos valores e visões de mundo – abrindo espaço para outras versões da realidade.


A comparação com a moda é muito oportuna. Como a moda, a propaganda faz parte do sistema de produção industrial da cultura. Como a moda, ela está comprometida com a produção de discursos inovadores no contexto da lógica da economia de mercado – onde, como diria Lipovetsky, em O império do efêmero, (Lipovetsky, 1989) impera o transitório. Como a moda, esse processo de inovação se dá sempre numa dinâmica coletiva. Se há tendências que vingam na moda, há modas que vingam no discurso publicitário. Assim, o uso de negros numa campanha ou peça de propaganda, pode levar, como tem levado, ao uso de negros em outras.


Diversamente da moda, no entanto, o produto da propaganda é o próprio discurso, cujo consumo independe da troca econômica, de poder aquisitivo ou, até mesmo, do desejo expresso de consumi-lo. Diversamente da moda também, por outro lado, a publicidade não vende apenas a si mesma – aos anúncios e suas mensagens – mas tem compromissos com clientes cujos produtos deve vender ou cuja imagem deve promover. Precisa, portanto, para não trair os seus propósitos, manter-se no interior de uma linguagem cujo vocabulário seja compreensível e cuja mensagem seja positivamente assimilada.


Na posição ambígua, entre a obrigação de atender ao cliente e a de inventar para ser notada, a propaganda tem sempre uma brecha para inovar, no sentido de tornar a exceção à regra. Como antenas sensíveis, os profissionais do mercado – em especial os publicitários e especialistas em marketing – detectam uma diversidade de visões de mundo que circulam na sociedade, que posteriormente selecionam e rearticulam, emprestando-lhes ênfases próprias. E, por estarem sempre em busca de diferenciais, irão estar especialmente atentos para a informação que ainda é periférica.


Como estratégia empresarial, sem dúvida. Potencialmente geradora de lucro, sem dúvida. O que não elimina o potencial dos discursos da propaganda daí resultantes, em termos da produção, disseminação e legitimação de outros modelos e ideais de comportamento social. O que, se não tiver nenhum outro efeito, terá pelo menos o de colocar em cheque determinados padrões aceitos como naturais, instalando o debate. Nem que seja porque está na moda.


* Ilana Strozenberg é pesquisadora e professora de graduação e pós-graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É também vice-coordenadora do Programa Avançado de Estudos Culturais (Pacc), do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

* Este trabalho é um resultado da pesquisa “A cor do mercado”, coordenada por mim, que integra o Projeto Integrado “Estética e política: relações entre raça, publicidade e a produção da beleza no Brasil”, coordenada pelo Prof. Peter Fry, com o apoio do CNPq.


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Artigo
Por uma estética da psicanálise

Por Carlos Augusto Peixoto Junior


Neste ano em que se comemoram os 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, não deixa de ser relevante a necessidade de repensarmos a psicanálise, tal como ela veio se desenvolvendo desde os seus primórdios. Neste sentido, a proposta de uma estética da psicanálise se mostra extremamente valorosa. Não foram poucos os debates até os dias atuais a propósito da cientificidade da teoria e da prática psicanalíticas. O próprio Freud, desde o momento em que abandonava o campo da neurologia do século XIX já se colocava questões a esse respeito, confrontando-se com algumas das ciências mais bem estabelecidas à época, dentre as quais se destacavam a medicina e a psiquiatria. Mesmo se mostrando crítico com relação aos parâmetros científicos estabelecidos por essas ciências – principalmente no que dizia respeito ao tratamento da histeria – ele sempre se viu às voltas com a necessidade de situar a psicanálise entre os campos das ciências da natureza ou do espírito, optando em última instância pelo primeiro 1. Do seu ponto de vista, a psicanálise só sobreviveria num embate direto com o seu maior inimigo, a religião, e embora não tivesse negligenciado a importância da arte, a ciência sempre lhe pareceu a melhor arma para combater o discurso religioso. Mesmo se diferenciando de outros discursos científicos, parecia necessário que o discurso psicanalítico fundasse uma outra dimensão do saber científico para que, só então, viesse a se estabelecer como uma referência fundamental no domínio dos saberes ocidentais.


Desde Freud o debate em torno da cientificidade da psicanálise ganhou contornos diferenciados entre os seus discípulos. Na psicanálise inglesa, por exemplo, esta questão não parece ter obtido um destaque maior. Os analistas desta escola se mostraram mais preocupados com o desenvolvimento de novas modalidades da técnica – das quais surgiram algumas inovações conceituais – do que com o estatuto propriamente científico da psicanálise. Já entre a escola francesa, foi possível notar, principalmente sob a influência de Jacques Lacan, notório personagem responsável por mudanças radicais na teoria e na técnica psicanalíticas, um interesse em buscar novas referências em diferentes ciências tais como a Lingüística, a Antropologia, a Lógica e a Matemática. Com isso, o discurso psicanalítico foi ganhando um teor cada vez mais formalista, e manteve-se a suposição de que as relações entre a ciência e a verdade fossem problemas que realmente devessem interessar aos analistas. Talvez como resposta a esse excesso de formalização do campo psicanalítico alguns analistas tenham buscado se aproximar da neurologia e do cognitivismo, enquanto as receitas de auto-ajuda proliferavam e alcançavam um sucesso tão estrondoso quanto preocupante. Já no domínio da psiquiatria observou-se o incremento das pesquisas farmacológicas com as quais ela supunha poder lidar com o sofrimento subjetivo crescente. No entanto, caberia perguntar: será que este é o melhor caminho a ser seguido pelos psicanalistas contemporâneos? Ou seria melhor deixar definitivamente em segundo plano as questões sobre a cientificidade e enveredar pelo caminho da estética?


Do nosso ponto de vista, não há qualquer dúvida de que a psicanálise teria muito mais a ganhar buscando aproximar-se mais da arte do que das ciências. Mas essa busca de uma proximidade com o campo da estética não se reduz de modo algum a um debate a respeito do tema da sublimação das pulsões, tal como foi promulgado por alguns psicanalistas freudianos ou pós-freudianos. Sublimar as pulsões sexuais ou mortíferas como componentes básicos do psiquismo humano, procurando na arte uma espécie de amortecedor para essas tendências, ainda nos parece pouco. Certamente seria mais interessante fazer da arte e da estética uma arma no combate aos niilismos moderno e contemporâneo tal como Nietzsche nos propôs. Segundo ele, só através delas poderíamos combater as tendências reativas provenientes não somente da religião, mas da própria ciência. Nessas condições, a arte serviria como um antídoto contra todas as forças que depreciam a vida em sua potência de afirmação da criatividade, combatendo o ressentimento e a má consciência que assolam a humanidade moderna desde que esta começou a buscar na ciência e na religião as melhores alternativas para o mal-estar na cultura. O homem, com sua tendência demasiado humana, via nestes saberes e discursos uma espécie de consolo para os aspectos trágicos da vida e com isso acabou por esvaziar cada vez mais as suas possibilidades de reinvenção de si e do mundo 2.


Talvez por não ter levado em conta essas considerações nietzscheanas a própria psicanálise tenha acabado por contribuir para o ressentimento e o niilismo que imperam em nossa sociedade, não apenas nos termos da teoria que ela construiu como também de sua prática clínica. Excessivamente preocupados com questões familialistas a partir de uma edipianização geral da subjetividade, muitos psicanalistas ortodoxos acabaram não se apercebendo da necessidade de rever alguns de seus parâmetros teóricos e clínicos, contribuindo para a manutenção do atual estado de coisas no que se refere aos anseios e sofrimentos humanos. Assim, ressaltar a importância de uma estética da psicanálise significa trazer de volta para o campo psicanalítico a potência de subversão que o caracterizou nos seus primórdios, e que por certo se perdeu justamente em função de preocupações excessivas com questões a propósito de sua cientificidade. Em termos teóricos, isso significa que é preciso rever e talvez abrir mão de alguns conceitos em benefício de outros. Questões tais como a importância da pulsão de morte, a necessidade da castração e da culpa como referentes universais de subjetivação, deveriam dar lugar a temas como o da intensificação de um potencial de afirmação dos aspectos criativos para que se pudesse resistir ao modo de subjetivação que a cultura e a civilização contemporâneas procuram impor aos diversos modos singulares de subjetivação.


Propor um modo de reflexão prioritariamente estético para o saber psicanalítico, portanto, implica também em considerar um fator de extrema relevância: o de que a clínica psicanalítica não pode ser pensada independentemente do modo de produção de subjetividade que caracteriza o nosso mundo. Dito de outro modo, não há clínica sem crítica da cultura. E esta precisa de novas referências tais como as oferecidas pela arte, para que seja possível acompanhar as rápidas transformações pelas quais estamos passando. No entanto, trata-se não apenas de acompanhar as mudanças, mas de considerar ainda o que pode ser oferecido à subjetividade em termos de resistência ao modelo de serialização que vem buscando homogeneizar as subjetividades. Esta modelização captura a potência de criação subjetiva e procura transformá-la no combustível que retroalimenta uma máquina que pretende se eternizar no seu modo de produção. Diante disso, propor uma estética da psicanálise é ao mesmo tempo formular uma ética e uma política que possam se contrapor às pretensões da ciência e da religião, no que elas podem funcionar como instrumentos de uma civilização e de uma cultura que têm produzido resultados absolutamente catastróficos para o futuro da humanidade.


Considerando a cartografia do mundo contemporâneo, fica óbvio que formas de sofrimento agudo tais como o esvaziamento subjetivo provocado por depressões graves, drogadições compulsivas, anorexias e bulimias são o resultado direto de uma redução drástica no potencial de criatividade próprio às subjetividades que podem afirmar a vida naquilo que ela tem de mais digno de ser vivido. Pensar uma estética enquanto plano de composição no qual a psicanálise possa ser recriada, implica ainda em fazer dela um instrumento terapêutico que nos ofereça também alguma saída para os impasses diante dos quais o biopoder colocou as subjetividades. Impasses nos quais a vida e a singularidade tornaram-se mais um objeto de consumo dentre tantos, e perderam o valor que elas deveriam ter enquanto instrumentos de transformação num mundo que ainda pode resistir às pretensões hegemônicas do capital. Quem sabe assim talvez seja possível abrir passagem para novas formas de subjetivação, que proporcionem com elas novas alternativas de construção de um espaço comum onde todos possam criar, em conjunto, territórios existenciais que viabilizem outras maneiras de viver a vida no que ela comporta uma força de invenção cada vez mais enfraquecida nas sociedades atuais.


Nesses termos, como dizia Félix Guattari, ressaltar a importância de uma perspectiva estética que vá de encontro à funcionalidade dominante parece no mínimo salutar 3. Mas é preciso dizer que destacar determinados coeficientes de liberdade criadora não significa, sob o pretexto da estética, naufragar num ecletismo que renunciaria a toda visão social. É o socius em toda a sua complexidade que exige ser re-singularizado, re-trabalhado e re-experimentado. Se a teoria psicanalítica continua marcada por uma ferida de origem que consiste no fato de ela ter nascido sob a égide de um paradigma científico, enfocar a invenção psicanalítica a partir de um prisma estético não significa de forma alguma desvalorizá-la. Pois se a cura não é uma obra de arte, não devemos nos esquecer de que ela pode proceder do mesmo tipo de criatividade. Talvez só por essa via a psicanálise possa reconquistar a potência subversiva de seus melhores momentos. Articulada a dispositivos, procedimentos e referências abertos à mudança ela pode recuperar sua vocação para engendrar uma subjetividade que escape aos modelos normativos e tornar-se apta para se agenciar com as singularidades e mutações de nossa época.


* Carlos Augusto Peixoto Junior é psicanalista; professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio; Pesquisador do CNPq; autor de Metamorfoses entre o sexual e o social, Editora Civilização Brasileira e organizador de Formas de subjetivação, Editora Contracapa.


1 Sobre isso ver Freud, S. “Presentación autobiográfica” (1925) e “Epílogo a ‘Pueden los legos exercer el análisis?” (1927) in Obras completas, vol. XX, B. Aires, Amorrortu Editores, 1990; Assoun, P. L. Introdução à epistemologia freudiana, RJ, Imago, 1983.


2 Cf. Nietzsche, F. La naissance de la tragédie, Paris, Gallimard, 1977 e Le gai savoir, Paris Gallimard, 1982.


3 Guattari, F. Caosmose: um novo paradigma estético, SP, Editora 34, 1992.


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Artigo
Entre a beleza e a problematização das cidades

Por M. Cecilia Loschiavo


Como é possível falar da beleza das cidades contemporâneas diante da crise avassaladora que paira sobre elas? As cidades contemporâneas configuram paisagens catastróficas, testemunhos da falência de nossos parâmetros de governabilidade. Multiplicam-se os desastres ambientais, a pobreza urbana promove a multiplicação das cidades de plástico e de papelão, construídas por aqueles que não têm onde morar. Qual é o regime estético que preside as intricadas configurações do ambiente urbano no qual vivemos?


Um dos aspectos marcantes da cidade contemporânea é a concentração espacial e urbana da pobreza, que vem se agravando desde o final do século XX e início do atual. Este fenômeno que sempre foi identificado como característico do Terceiro Mundo, agora constitui também um aspecto dominante em países do Primeiro Mundo.


O que são essas cidades? São as cidades construídas pelos moradores de rua re-utilizando, sobretudo, o plástico, o papelão e demais materiais e produtos descartados pela sociedade de consumo. A condição do morador de rua na sociedade capitalista, entendida como aquele que não tem o seu lugar próprio, que sempre está no lugar que não lhe pertence, levou-o a ocupar os espaços públicos, as praças e baixios de viadutos.


O mundo urbano apresenta situações desafiadoras e perversas, por exemplo, as questões relativas à habitação para os moradores de rua. Essas imagens que manifestam que o fenômeno do morador de rua não é um tema marginal, mas apresenta uma prevalência significativa em muitas cidades e, impressionantemente, ressaltam as relações entre o descarte de materiais e produtos e o descarte de seres humanos. Os números são crescentes e trata-se de importante tema para a arquitetura contemporânea.


As imagens apontam para um momento de mudança em nossa civilização. Certamente a arquitetura não é considerada como ferramenta única para resolver a situação, mas aos arquitetos e demais profissionais de projeto, cabe um papel extraordinário na manutenção da dignidade dessa população. Equipamentos adequadamente projetados poderão ser decisivos, por exemplo, na superação dos resistentes à albergue. A qualidade e adequação arquitetônica do edifício explicitarão ao morador de rua que ele não está adentrando a uma prisão ou depósito de seres humanos. O que é possível e desejável para abrigar esse imenso contingente de excluídos? O que é inaceitável? O que é adequado? Quais os conhecimentos necessários? Qual o papel dos arquitetos? Até muito recentemente as únicas opções para acomodação do morador de rua eram os rudimentares albergues, em condições precárias, com vagas insuficientes ou então dormir nas ruas, nas calçadas, sob viadutos nos intermináveis acampamentos, alvo de expulsões forçadas, gerando hostilidades, produzindo a Nimby (Not In My BackYard).


A emergência dessa complexa trama de relações nas cidades de plástico e de papelão, nas quais a maioria vive muito longe do mundo da economia formal indica que o mundo urbano do século em que vivemos aponta para outros paradigmas estéticos capazes de caracterizá-lo.


Embora, freqüentemente igualamos o conceito de estética ao conceito de beleza, esta definição é muito limitada. Os efeitos da estética são eminentemente perceptivos e não cognitivos. Entretanto, as imagens apresentadas possuem um poder perturbador, provocam um distúrbio nos conceitos de fruição do espaço urbano, ao mesmo tempo essas imagens manifestam o quanto nossas cidades estão despreparadas para enfrentar os espantosos índices de pobreza urbana. Como falar da beleza das cidades contemporâneas diante dos crescentes índices de pobreza urbana e das cifras sem precedentes da imensa massa de trabalhadores, que sobrevive da economia informal, sem nenhum tipo de garantia, de direito reconhecido, e, muito mais grave, imersos num quadro crítico de abuso contra mulheres e crianças?


Nessas condições, as ruas de nossas cidades se tornaram o receptáculo de objetos desfuncionalizados e degradados, o lixo de nossa cultura industrializada e tecnológica, expondo publicamente as contraditórias relações entre tecnologia e sociedade. Muitas dessas ruas foram transformadas em um verdadeiro “museu da exploração”, como tão bem definiu o pesquisador Mike Davis em seu último livro – Planet of slums, com crianças de todas as idades expostas publicamente e trabalhando, em todos os tipos de trabalho, sob os mais primitivos regimes de exploração.


As imagens nos trazem a constatação de uma paisagem sinistra e caótica, onde a síndrome de Nimby prevalece e se amplia, originando todos os tipos de regulamentações, de zoneamento e, sobretudo, alimentando a intolerância.


Para lutar contra a intolerância, os movimentos sociais vêm criando uma consciência da rua e da cidade, bem como se articulando pela sua transformação, pela criação de um outro espaço. O papel desses movimentos fica cada vez mais evidente e se reflete no próprio crescimento dos fóruns sociais. A presença desses movimentos reitera uma significativa consideração do filósofo Michel Foucault sobre as ligações entre espaço, conhecimento, poder e política cultural. Em seu célebre ensaio “Des espaces autres”, ele ressaltou que essas ligações devem ser vistas ao mesmo tempo como opressivas e possibilitadoras, compostas não somente pelos perigos autoritários, mas também pelas possibilidades para resistência.


Ao perguntarmos sobre o regime estético que caracteriza as cidades contemporâneas creio que os aspectos da fragmentação, do descarte, da bricolage, e da resistência são elementos significativos. Mas esses aspectos coexistem lado a lado com outras imagens, que também integram a nossa experiência sensorial e estética da cidade: da moda, da arquitetura, do design de produtos, do design de sistemas, e mesmo do design gráfico dos anúncios publicitários que vertiginosamente cativam nossas escolhas de consumidores.


Assim, a cidade contemporânea toca a nobreza de nossos sentidos, mas também ela manifesta outras formas visuais diferenciadas, que manifestam os mais cruéis conflitos do nosso mundo urbano. Seria necessário muitos olhos no corpo e na alma para descrevermos esse universo. Mais do que isso, necessitamos de uma arqueologia da visão para caracterizar a estética da cidade contemporânea. Ainda que não diretamente vinculado à experiência da cidade contemporânea, Michel Foucault nos abriu uma perspectiva relevante nesse sentido, quando nos alertou sobre a diversidade dos vários regimes visuais presentes no espaço de uma determinada cultura.


* M. Cecilia Loschiavo é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.


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Resenhas

Arte e beleza na estética medieval

A beleza como fruto divino refletia teocentrismo e podava atuação humana

Germana Barata


Em meio a pestilências, fome e pobreza, há espaço para olhar a beleza, mesmo como forma de acobertar a realidade. O longo período de dez séculos que compõe a Idade Média foi, para muitos, ausente em sensibilidade estética, bárbaro e sombrio. Localizada entre a Antiguidade Clássica (4000 a. C. ao século IV), com seu olhar voltado sobre o cosmo e a natureza, e a Renascença (século XIV a XVI) , com o papel do homem de novo protagonista da história antes dominada pela religião, a Idade Média foi vista por seus sucessores como um período em que pouco aconteceu. Nesta obra escrita em 1987, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco mostra que o período contempla reflexões e mudanças temporais que contribuiriam para o salto dado durante o Renascimento que, como o próprio nome diz, indica a visão em relação ao período anterior.


A beleza é, sobretudo, vista pelos medievais como um atributo divino e, portanto, as obras feitas pelos homens são consideradas imitações da realidade criada por Deus, excluindo assim qualquer possibilidade de processo criativo. Com isso, a arte não era tida como uma forma de modificar a realidade ou propor uma diferente visão da mesma, mas sim espelhava a natureza. “A degustação estética (...) consiste em perceber na coisa concreta um reflexo ontológico da virtude participante de Deus”. O belo está em todos os lugares e é sinônimo do bem, da verdade, refletindo uma conjunção harmônica de beleza física e virtude.


Mas como entender a beleza com uma definição ampla o suficiente para justificar qualquer coisa? Entre as explicações está o conceito de proporção, tomado da Antiguidade, em que há um gosto por uma perfeição numérica. Explica-se a preferência estética através das proporções entre as partes e das correspondências destas com o todo. É possível achar correspondência entre o cosmos e as coisas produzidas por Deus, entre o macro e o micro, afinal são todas obras do mesmo autor.


A idéia da proporção chega à Idade Média por meio da influência dos estudos matemáticos da música feitos por Pitágoras na Antiguidade. A escolástica – filosofia ensinada nas escolas da época, responsável por manter os valores cristãos – ensinava música juntamente com aritmética, geometria e astronomia, aproximando o que hoje é considerado arte e ciência. A arquitetura também fazia usos intensos da simetria, ordem, proporção, também como modo de criar uma consciência estética do ofício; sabe fazer aquele que domina a técnica.


No local sagrado, os vitrais em rosácea da arte gótica, exibem a perfeita proporção arquitetônica. Originado no século XII, esse princípio estético considerado ideal representa bem a dualidade medieval belo-divino, uma vez que permite a entrada de luz (sinônimo do divino) e cores onde antes era escuro, negro, pesado. E são estes novos elementos, de luz e cores, que passam a ser considerados na explicação da beleza qualitativa, aquela que é fruto de uma reação espontânea, que difere da beleza numérica, proporcional.


A luz, enquanto metáfora das realidades espirituais, segue o pensamento dogmático teológico medieval. A literatura exalta a luminosidade. O gosto cromático é simplificado e imediato, ou seja, nas pinturas as cores não se misturam para formar novos tons, degradês, esfumaçados. Na poesia elas são as mesmas de suas representações reais: o sangue é vermelho e a relva verde. As cores também aparecem nos costumes, nas roupas, nos enfeites e nas armas.


Não coincidentemente, o filósofo inglês Roger Bacon (1214-1294) proclamou a ótica como nova ciência, estudou a refração da luz, desenvolveu lentes com sugestão de uso para correção da visão e contribuiu para estabelecer o método científico. A estética medieval participava, assim, dos avanços no pensamento científico e na prática tecnológica.


A beleza também surgia como metamorfose, que fascinava o homem medieval como esforço interpretativo do mundo. “As alegrias da visão, da audição, do olfato, do tato nos abrem para a beleza do mundo, para que nela descubramos o reflexo de Deus”. Assim, os objetos visíveis devem ser compreendidos como a significação e a declaração das coisas invisíveis (divinas). Umberto Eco pontua que o filósofo e bispo católico Santo Agostinho (354-430) foi o primeiro a fundar a teoria do signo, já no século IV, no início da Idade Média. “Ele afirma com energia que o signo é toda coisa que faz vir à mente alguma coisa além da impressão que a própria coisa causa a nossos sentidos”. As enciclopédias medievais acumulam o conhecimento real e fantástico, trazendo referências simbólicas múltiplas e registrando sentidos contraditórios. Interpretam, sobretudo, os símbolos presentes no livro sagrado.


Erazmus Ciolek Witelo (1230- pós 1280), cientista originário da região onde hoje está parte da Polônia, agregou um importante elemento à percepção do belo, que ia além da visão de luzes e cores. Em sua perspectiva este cientista analisou a relação sujeito-objeto e concluiu que existem realidades mais complexas que a visão não compreende sozinha, mas que requer um ato de raciocínio que compara entre si as diferentes formas percebidas com o conhecimento prévio sobre a coisa, gerando uma visão conceitual. Há assim, uma relatividade do gosto e que pode variar conforme o tempo e a região, ou seja, não há regras que estabelecem a beleza, mas ela é determinada de acordo com a interação com aquele que a percebe. “O que provoca o prazer”, diz Eco, “é a objetiva potencialidade estética, e não é o prazer que define ou determina a beleza de uma coisa”.


Beleza funcional


A percepção do belo com suas precisões matemáticas atinge também a adequação da forma a sua função, a exemplo do corpo humano e de todas as formas da natureza. Mas a relutância em diferenciar estética e funcionalidade, arte e técnica, faz com que se insira a estética em todos os atos da vida. Os próprios princípios da ciência da época são relacionados a razões de beleza. “Falta à Idade Média uma teoria das belas-artes, uma noção de arte como a concebemos hoje, como produção de obras que têm por objetivo primeiro a fruição estética, com toda a dignidade que esta destinação comporta”.


No entanto, as artes são sub-divididas em nobres e manuais, sendo que a segunda se diferencia pelo esforço físico. Em plena sociedade feudal, o trabalho braçal era visto como inferior. Mesmo sendo funcional e imitando a natureza, era claro que a arte não poderia criar coisas vivas e, portanto, ficava abaixo da alquimia, que tinha o poder da transmutação da matéria. “Sinal de que (...) agitavam-se já as exigências da ciência e da filosofia natural do Renascimento”. O artista medieval se diferencia, assim, daquele que surge no Renascimento, que tem orgulho de sua própria individualidade. Mesmo quando consideramos a arquitetura praticada na Idade Média, não era possível encontrar qualquer marca pessoal do artista. Já os poetas do século XI, considerados artistas superiores, enxergam em sua obra uma maneira de adquirir imortalidade.


A passagem da Idade Média para o Renascimento não é feita, segundo o autor, de forma abrupta. Na realidade, a periodização histórica só pode ser traçada posteriormente quando já é possível delinear diferenças sociais, filosóficas, econômicas e religiosas de um período. Umberto Eco não tem a pretensão de fixar limites cronológicos claros, mas sim detalhar os principais conceitos utilizados pelos pensadores das teorias da estética, entre eles a proporção, a luz, as cores, o símbolo. Fica claro que os dez séculos transcorridos no período estão tão fortemente enraizados no poder da Igreja que o homem medieval pouco se permitia questionar, mesmo em relação à concepção do belo. Aos poucos as percepções do mundo não conseguem mais pertencer a este pequeno universo de interpretações e o homem vai ganhando espaço.


Embora o autor mencione que sua obra pretende ser acessível ao público não-especialista, o leitor esbarrará em dificuldades de linguagem que poderão desmotivar os mais afoitos. Mas o conteúdo é organizado de forma didática ao passar pelos conceitos mais importantes da época e as inúmeras reflexões feitas pelos filósofos, cientistas e teólogos medievais, até chegar ao Renascimento. O objetivo é oferecer uma imagem da época e não uma contribuição filosófica à definição contemporânea de estética, embora as teorias da estética medieval sempre nos levam a pensar sobre o presente. Para o homem da Idade Média, beleza era mais do que apreciar um dado objeto, mas era se lembrar constantemente daquele que o criou, de sua origem, da religião que o regia, de Deus. Se por um lado essa filosofia limitou o pensamento do homem como atuante do mundo que estava à sua frente, por outro permitiu que se justificassem as agruras dos bárbaros, as cruzadas, as altas taxas de mortalidade causadas pelas pestilências e fome. Não se questionava, afinal, a atuação do homem em seu destino e muito menos qualquer contradição, complexidade ou multiplicidade.


A conciliação entre as contradições e os opostos tem papel fundamental no Renascimento, no início do século XV que, segundo Eco, é um golpe mortal no pensamento escolástico medieval. Nicolau de Cusa (1401-1464), cardeal da Igreja Católica, filósofo e cientista, desenvolveu a idéia da pluralidade dos mundos, da polidimensionalidade do real, do todo podendo ser enfocado de diferentes ângulos visuais. Ele enfatiza o ato criativo colocando o homem ao lado de Deus, como seu colaborador. No final daquele século, a América será descoberta, ampliando a geografia, os limites do mundo, da cultura e avançado nas técnicas de navegação, da técnica e da ciência. O homem vai ganhando espaço até se tornar o protagonista do drama religioso, o mediador entre Deus e o mundo. Na arte, passa a ser possível modificar a natureza e o estético não diz respeito somente à contemplação do mundo, mas também à própria prática cotidiana.


Umberto Eco nasceu em 1932 e essa obra sobre beleza e estética na Idade Média foi baseada em seus primeiros trabalhos dedicados ao estudo da estética medieval, sobretudo aos textos de Santo Tomás de Aquino, escritos nos anos 1950. Atualmente, este filósofo e escritor italiano atua como titular da cadeira de semiótica e diretor da Escola Superior de Ciências Humanas na Universidade de Bolonha. Arte e beleza na estética medieval foi originalmente escrita em 1987 como edição modificada de sua obra Sviluppo dell'estetica medievale de 1959.


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Arte e beleza na estética medieval

Umberto Eco

Editorial Presença, 2000


Entrevistas
Denise Bernuzzi Sant´Anna

Para historiadora, a atual onipresença do direito e do dever de se embelezar se sustenta nos progressos da ciência e da indústria, no papel preponderante da publicidade, na liberação sexual, feminina e corporal, crescente desde a década de 1960.
Marta Kanashiro


Por meio de livros como Corpos de passagem (Estação Liberdade, 2001) ou Políticas do corpo (Estação Liberdade, 1995), e vários artigos e conferências, Denise Bernuzzi de Sant'Anna vem abordando, há mais de 10 anos a questão do corpo na contemporaneidade. Professora de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Denise doutorou-se em 1994, na Universidade de Paris VII, com uma tese sobre a história do embelezamento feminino. Nesta entrevista para a revista ComCiência, a historiadora procura fazer emergir o processo de construção do conceito de beleza como forma de politizar esse debate e defende: “A beleza corporal é uma relação. Não existe em si mesma, como às vezes se imagina! Também o corpo existe numa trama de relações ... politizar o embelezamento seria uma maneira de compreender as razões sociais dos nossos gostos e necessidades de cuidar da aparência”.


ComCiência - O belo, ou a beleza, são conceitos dinâmicos que encontram diferentes representações ao longo da história e em culturas diversas. Em que está ancorada esta idéia na atualidade, nas sociedades ocidentais contemporâneas? É possível marcar distinções com relação a culturas orientais ou não ocidentais da atualidade?

Denise Sant’Anna - Sem dúvida há uma diversificada história da beleza, muito rica para o entendimento das mudanças nos padrões de comportamento, dos gostos e das maneiras de tratar o corpo ao longo do tempo. A vontade de rejuvenescer e de conquistar a beleza é milenar. Entretanto, a partir do século XX, menos do que um dom de Deus, a beleza tende a ser o resultado de um trabalho que cada um realiza segundo seus próprios recursos: malhação, cirurgia, cosméticos, meditação ... ser belo não é somente um dever mas, principalmente, um direito. E um direito amplo, que, ao contrário de épocas passadas, inclui adolescentes, idosos, ambos os sexos e todas as camadas sociais.


A atual onipresença do direito e do dever de se embelezar está sustentada nos progressos da ciência e da indústria, no papel preponderante da publicidade, na liberação sexual, feminina e corporal crescente desde a década de 1960. Se outrora os cuidados com a alma eram tão ou mais importantes do que aqueles com o corpo, hoje vive-se uma espécie de inversão: o corpo se tornou a parte principal do ser, é para ele que fazemos nossos principais sacrifícios e é dele que esperamos os maiores prazeres ou recompensas. No entanto, há quem escape disso; existem algumas maneiras de lidar com o corpo que tendem a considerá-lo uma passagem para a expansão da sabedoria; e elas ocorrem tanto no mundo oriental, quanto em culturas ocidentais.


ComCiência - Como se dá a passagem, ou quais elementos de permanência e ruptura, da beleza física, como reflexo da beleza divina, para a atual aliança que a senhora detecta em seus artigos entre beleza corporal e os investimentos em saúde, esportes e moda?


Denise Sant’Anna - Quando a beleza deixa de ser considerada a prova da existência divina para ser a expressão principal da subjetividade de cada um, em cada momento da vida, ser belo torna-se, mais do que nunca, algo permeado pelas flutuações da moda e dos interesses de mercado. Se por um lado ganhamos em liberdade para fazer com nosso corpo aquilo que queremos, independente da nossa origem, idade e condição social, por outro ganhamos também em responsabilidades e solidão. O custo/benefício individualizou-se como nunca no âmbito dos cuidados com o corpo! Antigas fronteiras entre beleza esportiva, beleza específica de misses, ou de cada região do planeta, tenderam a ser relativizadas em nome de uma BELEZA INTERNACIONAL, existente full time. Já na década de 1960, a expressão "beleza internacional" começava a ser utilizada, mas hoje nem é mais preciso falar assim, sabe-se que para ser bela deve-se seguir minimamente os padrões universais, amplamente difundidos por revistas, televisão, cinema etc. Somos mais livres do que nossos avós para utilizar cosméticos, praticar esportes, cuidar do corpo e cultuá-lo. E, ao mesmo tempo, somos mais exigentes do que eles nesse assunto, pois quanto mais o corpo se expõe (barriga, seios, pernas, etc) mais intenso e freqüente deve ser o trabalho de depilá-lo, bronzeá-lo, massageá-lo ... tornando-o mais e mais fotogênico, pronto para ser mostrado publicamente em qualquer hora e local.


ComCiência - Em um de seus artigos, a senhora parece afirmar que a proliferação do nu feminino, considerado belo e saudável no século XX, está relacionada com “instigar o desejo humano a estar sempre disponível, pronto para ser acessado”. Pode-se dizer que o corpo é, nesse sentido, um veículo de investimento do capitalismo, uma vez que abarca o desejo a ser capturado pelos movimentos do capital?


Denise Sant’Anna - Sim, o corpo foi muito estudado como sendo um objeto de rendimento para o trabalho nas fábricas, por exemplo: meio de obter lucros, instrumento de produção. A seguir, ele foi analisado várias vezes como sendo objeto fundamental de consumo e de lazer. Hoje poderíamos dizer que o corpo é tudo isso e, também, uma trama de sentimentos que envolvem a potência de expandir a própria vida. Mas corremos o risco de empobrecer o entendimento dessa potência e de traduzi-la pela obrigação de obter prazer incessante, como se o corpo fosse uma fonte inesgotável de sensações deliciosas, no qual o sofrimento não tem mais razão de existir. A idéia de um desejo sempre prestes a se manifestar, potente e sem falhas, é fruto desse equívoco: pensar que o desejo é, sempre, prazer sem tréguas, felicidade sem contrário, euforia sem limites.


ComCiência - No número 56 da Revista e, do SESC São Paulo, a senhora menciona a crônica “Moedeiros falsos e falsificadores da mulher”, de José de Alencar, escrita em meados do século XIX, comparando a fabricação da beleza naquela época e na atualidade, representada pela miss Brasil 2001, que se submeteu a uma série de intervenções cirúrgicas para obter padrões competitivos de beleza. Quais as principais mudanças que a senhora apontaria entre essas duas representações?


Denise Sant’Anna - A primeira delas é a passagem entre uma época em que os produtos de beleza eram, em geral, exteriores ao corpo, utilizados de modo provisório, (anquinhas, laquê, antigos rouges) para uma época em que a beleza deve fazer corpo com o corpo (próteses, depilação definitiva, aquisição de músculos pela ginástica). A distinção entre ser bela e parecer bela foi, durante décadas, tolerada e, até mesmo, desejada. A partir da década de 1970, sobretudo, os conselhos de beleza dirigidos à mulher investem na idéia de que todas podem ser belas desde que comprem novos produtos e técnicas que, ao contrário dos velhos truques de beleza, prometem a modificação profunda da aparência e do organismo. A segunda é a passagem entre uma mulher que ainda não era totalmente sujeito do seu corpo para uma referência feminina que aposta na transformação da mulher em proprietária do seu capital beleza-saúde-auto-estima. Essa tríade rege o universo do embelezamento atual e tende a justificar numerosas práticas de embelezamento outrora consideradas radicais, imorais ou então desnecessárias. Quando a saúde e a beleza são vistas como capitais, o trabalho de melhorar o estado físico torna-se infinito.


ComCiência - E como poderiam ser analisados casos como o de Débora Rodrigues, mulher sem-terra que posou nua para a revista Playboy em 1997, ou de Cristiane Andrade, a catadora de lixo que se tornou modelo?


Denise Sant’Anna - Esses acontecimentos têm relação não apenas com o poderio da mega indústria da beleza mas, igualmente, com o papel da mídia na vida das pessoas. Além disso, há a galopante valorização da tendência que podemos chamar de "qualquer um deve se tornar alguém": vive-se sob a coação de que devemos vencer sozinhos e graças não apenas aos esforços no trabalho ao longo dos anos, mas por meio dos dotes físicos conquistados rapidamente. Ora, a mídia concentra grandes poderes e exibe as conquistas de alguns, como se elas fossem acessíveis a todos. Hoje, há um crescimento impressionante dos programas de TV feitos com pessoas comuns, anônimas, mas cujas histórias, também comuns, ao serem narradas e mostradas via TV tendem a agregar algum SIGNIFICADO especial à vida banal das pessoas! Vivemos uma época de grande aversão à tendência de "passar despercebido", de não ser especial para alguém. Busca-se ficar percebido, marcar presença, ser lembrado, procurado, tornar-se absolutamente necessário, e não supérfluo! E é pela aparência física que se pode obter isso de modo mais rápido e com grande impacto. Mas por que essa ânsia em marcar presença? Ora, vivemos numa sociedade que tanto cultua o corpo como não cessa de aviltá-lo, comercializá-lo, desprezá-lo. O corpo reina e padece por toda a parte. Nossa sociedade não cessa de desvalorizar as singularidades das pessoas e de torná-las desnecessárias, sem significado, incertas. E as passarelas, a TV, a publicidade, prometem justamente o contrário. Enquanto tudo parece incerto e instável (relações, emprego, vontades) o próprio corpo tende a ser considerada a única coisa que resta.


ComCiência - Para a senhora a prática cotidiana da beleza na atualidade relaciona-se com a obtenção de prazer pessoal e com o cuidado de si. Como esses campos, e ainda a relação entre individual e coletivo, compõe o processo de construção da beleza hoje?


Denise Sant’Anna - Houve um tempo em que a propaganda de cosméticos costumava recomendar à mulher: seja bela para o seu marido ou namorado. Essa tendência ainda existe, lógico, mas juntamente com outra: seja bela para si mesma, "curta esse prazer".
Muitas vezes temos a impressão de que a beleza é o meio mais seguro de obter sucesso, poder e significado.


ComCiência - Fazer emergir os processos de construção do conceito de beleza é uma forma de politizar essa esfera?


Denise Sant’Anna - Sem dúvida, e para isso seria preciso politizar também a vida urbana, as relações amorosas, e as relações consigo. A beleza corporal é uma relação. Não existe "em si mesma", como às vezes se imagina! Também o corpo existe numa trama de relações. Além disso, politizar o embelezamento seria uma maneira de compreender as razões sociais dos nossos gostos e necessidades de cuidar da aparência. Desse modo, perceberíamos que aquilo que hoje nos é extremamente necessário e natural em matéria de beleza, no futuro poderá, talvez, perder completamente o sentido!



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