Referências Simpáticas... algumas pitadas de nossas matrizes estético/ emocionais/ criativas/etc...


Maria Paula Sibilia

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2853,1.shl


O pavor da carne

Por Ilana Feldman


Para a antropóloga Paula Sibilia, o corpo é cada vez mais vivenciado como imagem a ser consumida visualmente

A antropóloga argentina Paula Sibilia, radicada no Brasil, tem se dedicado à árida tarefa de escavar o solo sempre pantanoso do presente. Debruçando-se sobre nossas paradoxais e polimorfas práticas socioculturais, a autora de “O Homem Pós-Orgânico - Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais” (Ed. Relume Dumará) dá continuidade, em uma de suas mais recentes pesquisas, à investigação dos discursos e saberes hegemônicos que têm feito da valorização e da capitalização do corpo um imperativo que se ramifica por todos os âmbitos da vida.


Em “O Pavor da Carne - Riscos da Pureza e do Sacrifício no Corpo-imagem Contemporâneo”, tese de doutorado apresentada em setembro de 2006 ao Instituto de Medicina Social da UERJ, Sibilia nos alerta que tal valorização do corpo não se restringe a sua “cotação” no mercado, ao hedonismo programado, nem aos discursos midiáticos e publicitários; nem mesmo o desenvolvimento da tecnociência contemporânea, pautada por tendências fáusticas de recusa ao envelhecimento da carne e ultrapassagem do humano, pode ser tomado como única justificativa.


Antes, segundo a autora -também professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF-, a valorização de nossa inefável corporeidade assenta-se sobre um paradoxo inextrincável. Pois, se de um lado o corpo é adorado e valorado como um “capital” pessoal que devemos incessantemente administrar, de outro, ele é rejeitado e desprezado em toda sua organicidade, adiposidade e viscosidade material. Viria daí o imperativo da pureza e do sacrifício, que, através das práticas bioascéticas (como dietas, musculação e cirurgias plásticas) e das tecnologias de digitalização e “lipoaspiração” da imagem, engendram um recente fenômeno: a lipofobia.


Tal lipofobia legitima uma série de condenações morais que recaem sobre certas aparências e certas práticas corporais -como ser gordo ou sedentário, por exemplo-, estigmatizadas como negligentes e vinculadas a uma ausência de “força de vontade”, autodeterminação ou motivação, isto é, a uma má “gestão de si”. Nesse contexto, um “mau gestor-de-si” dificilmente seria aprovado em uma dinâmica de seleção de candidatos para grandes companhias. O que implica dizer que a contemporânea “gestão-de-si”, amalgamada pela privatização das biopolíticas, guia-se por valores empresariais de custo-benefício, pela negociação dos riscos e, sobretudo, pela responsabilização individual.


Do mesmo modo, é a lipofobia que avaliza a cada vez mais evidente construção e digitalização do corpo como uma imagem, virtualizada e descarnada, objeto de design exclusivamente desenhado para o consumo visual. Assim, é no âmbito da produção de um corpo-imagético, e no contexto de um planeta “linkado” pelos fluxos do capital transnacional, que este projeto -estético, asséptico e tecnocientífico- de sociedade vigora, em consonância com um neognosticismo de inspiração digital que pretende “virtualizar” o corpo humano, ultrapassando os limites de sua materialidade orgânica.


Desafiando clichês do pensamento e os lugares-comuns sobre o corpo, Sibilia se pergunta, ao final de sua tese, quais seriam as implicações desta valorização extrema do mercado das aparências, que, desprezando a viscosidade orgânica tipicamente humana, procura desesperadamente um corpo visível, puro e “perfeito”; um corpo-imagem decalcado das imagens ideais emanadas pela mídia, pelo marketing, pela publicidade. Um corpo cuja desejada perfeição imaterial só pode contentar-se com um outro ideal, o de uma “felicidade lipoaspirada”.


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Depois de tantas mortes por anorexia no Brasil e no mundo tem havido uma culpabilização exclusiva do mundo da moda e uma conseqüente auto-isenção por parte da mídia, sobretudo a publicitária. É legítimo culpabilizar apenas o mundo fashion ou se está fugindo dos pressupostos que conformam a questão?


Paula Sibilia: Não acho que seja honesto culpabilizar apenas o mercado da moda, embora os desfiles constituam um elemento importante nessa “roda viva” que glamouriza o modelo de beleza “magro”, contribuindo de forma privilegiada para a exposição e o enaltecimento desse padrão. É claro que a mídia e a publicidade também colaboram na disseminação desse modelo. De todo modo, acredito que o fenômeno extrapola a responsabilidade exclusivamente midiática.


Trata-se de um problema bem mais amplo: vivemos imersos numa atmosfera sociocultural que incita à reprodução na própria carne dessas imagens corporais expostas na mídia. O que acontece na nossa cultura é inédito, embora em todas as sociedades tenha vigorado certo padrão de beleza que se impõe como modelo a ser desejado ou até mesmo imitado. A particularidade da nossa cultura contemporânea, cada vez mais globalizada e atravessada pela irradiação midiática das diretrizes do mercado, é que esses padrões se “democratizaram”.


Isso significa que, graças à expansão do mercado de produtos e serviços de embelezamento nas últimas décadas, a beleza se tornou um valor à disposição de “todo o mundo”: algo que pode ser conquistado individualmente. Já em meados do século XX, as mensagens publicitárias afirmavam que toda mulher podia ser bela. Hoje em dia, toda mulher deve ser bela, magra e jovem -e, cada vez mais, todo homem também deve ser belo, magro e jovem. Acredito que o nó deste problema reside nessa tirania do padrão de beleza obrigatório que vigora entre nós, propulsionado pela mídia e pelo mercado num jogo de forças muito complexo. Conclusão: isso não se resolve regulando o índice de massa corporal das moças que desfilam nas passarelas da moda.


Afinal, o que é o corpo? E quais as implicações da cultura somática sobre nossa auto-imagem?


Sibilia: O termo “corpo” aceita múltiplas definições, dependendo do que queiramos enxergar ou compreender através dessa conceituação. Na cultura contemporânea, os corpos humanos são cada vez mais vivenciados como imagens. O corpo de cada um é arduamente trabalhado para ser exibido e observado, como uma imagem para ser consumida visualmente.


Nesse sentido, o atual “culto ao corpo” implica também um certo desprezo pela espessura carnal do organismo humano, já que rituais como a musculação, as cirurgias plásticas e os regimes dietéticos podem ser praticados visando à construção de um corpo sem organicidade. Desenha-se, assim, um corpo descarnado, um corpo desprovido de todo sinal de viscosidades orgânicas. Pois esse corpo pensado idealmente como uma imagem se torna bidimensional: é um tipo de corpo que sonha com perder a sua espessura orgânica, que ambiciona ultrapassar a sua materialidade para se tornar não-carnal.


Por que o corpo está no centro das biopolíticas contemporâneas?


Sibilia: Esta preocupação contemporânea com a imagem do corpo evidencia certos deslocamentos do eixo em torno do qual as subjetividades se constroem. Como conseqüência dessas sacudidas, a verdade sobre o que cada um é não se oculta mais no cerne da nossa interioridade psicológica -naquele magma denso e misterioso, oculto “dentro” de nós-, mas, cada vez mais, passa a se expor na superfície da própria pele.


Há um deslocamento do eixo central que alicerça a experiência de si, implicando fortes mutações nas formas com que nos construímos como sujeitos. Em vez daquelas subjetividades tipicamente modernas, pacientemente elaboradas no silêncio e na solidão do espaço privado (um tipo de caráter introdirigido), proliferam de maneira crescente as personalidades alterdirigidas: voltadas não mais para “dentro de si”, porém para “fora”, para se expor ao olhar dos outros.


Por isso se trata de modos de ser “exteriorizados”, subjetividades que se constroem visando provocar determinados efeitos no olhar alheio, a fim de atingir o cobiçado campo da visibilidade. Estas novas modalidades subjetivas e estes novos tipos de corpos assim construídos, de alguma maneira são mais afinados e compatíveis com as demandas da sociedade contemporânea.


Modernamente, como você apontou, éramos definidos por nossa interioridade, no sentido de um espaço íntimo e privado localizado “dentro” de cada indivíduo; espaço interior em torno do qual as subjetividades eram laboriosamente definidas por seus conflitos e zelosamente alicerçadas por seus segredos. Este paradigma, hoje, provoca até certa graça e, para muita gente jovem, é de difícil compreensão. Você vê essa mudança como um deslocamento ou uma ruptura?


Sibilia: Eu acredito que se trata de um deslocamento muito complexo, não apenas desse eixo espacial da interioridade (daquele espaço interior e oculto) onde se hospedava a verdade sobre si, que se desloca gradativamente em direção à epiderme visível do corpo, mas também um deslocamento do eixo temporal em torno do qual as subjetividades modernas se construíam.


Nesse sentido, perde também peso o forte papel desempenhado pela história pessoal da cada sujeito, algo igualmente fundamental na modernidade: um passado individual com espessura semântica, capaz de explicar e dar sentido ao eu presente. É por isso, também, que hoje é possível reivindicar a capacidade de mudar com tanta facilidade e com um entusiasmo sempre renovado. Refiro-me à capacidade de “virar outro e começar uma nova vida”, após operar uma série de transformações na aparência visível do corpo.


Trata-se, então, de um movimento muito complexo de deslocamento dos eixos em torno dos quais as subjetividades modernas se construíam, uma transformação que pode implicar uma verdadeira ruptura nas formas de construção de si. Acredito, contudo, que ainda estamos vivenciando essa transição, essa mudança de regime e, portanto, o processo está em pleno andamento.


Haveria como escapar ao paradoxo do corpo adorado e simultaneamente rejeitado?


Sibilia: Sim, eu acredito que não apenas “haveria” como sem dúvida “há” muitas formas alternativas de vivenciar a própria subjetividade encorpada, e de lidar com os outros sujeitos fugindo destas configurações padronizadas. Sempre houve (e confio que sempre haverá) uma enorme riqueza de experiências individuais e coletivas que fogem dessas formas hegemônicas de assujeitamento.


Porém, o modelo de beleza que vigora na sociedade contemporânea é cada vez mais tirânico e universalizado, pois a gradativa “democratização” da beleza artificial que agora pode ser comprada e conquistada, decorreu numa responsabilização individual e até mesmo numa obrigação de encarnar o padrão vendido como ideal. Um imperativo que não aponta apenas às moças em idade de procurar marido, mas que abrange gradativamente todas as mulheres e todos os homens, de todas as idades e grupos sociais.

Contudo, uma das formas mais eficazes de burlar essas tiranias consiste em colocá-las em questão: discutir seus fundamentos e questionar seus sentidos -inclusive e, sobretudo, seus sentidos fortemente políticos.


Diversos cirurgiões plásticos se colocam como artistas renascentistas, capazes de criar sua “obra perfeita” -perfeição, evidentemente, pautada pelos modelos clássicos de beleza. Não obstante, são eles que sugerem e definem, com base em seus critérios e padrões estéticos, aquilo que deve ser alterado, ou “corrigido” (como eles dizem). Ao mesmo tempo, geneticistas contemporâneos empreendem uma corrida para a catalogação genética, com a conseqüente seleção dos genes por parte dos consumidores, interessados na possibilidade de escolha das características fenotípicas, daquelas ligadas a aptidões e dos antecedentes familiares de possíveis doenças hereditárias. Que tipo de mentalidade está pautando a tecnociência, com quais implicações para as definições de “natureza” e “beleza”?


Sibilia: Tanto nos discursos da genética como nas propostas da cirurgia plástica aparece um grande sonho da tecnociência mais recente: uma vontade de ultrapassar certos limites que antes se consideravam intransponíveis. As fronteiras que separavam o natural do artificial estão sendo redesenhadas, e há um impulso “fáustico” de superação desses limites outrora rígidos, com o intuito de recriar tecnicamente aquilo que a natureza fez “torto” ou “imperfeito”.


Você cita dados alarmantes sobre a “epidemia” de obesidade, que já está afetando nada menos que 35% da população infantil mundial, ou uma em cada três crianças. De modo ainda mais assustador, nos Estados Unidos já há 120 milhões de adultos a cima do peso -o que equivale a 65% da população do país-, das quais 61 milhões são considerados obesos. Não obstante, a “ressaca da festa consumista”, como você diz, implica o incremento de uma parcela da população mundial que cotidianamente morre de fome: 24 mil pessoas por dia, 11 crianças por minutos. Qual a relação entre o velho fantasma da fome e a “epidemia” da obesidade? E, nesse sentido, como situar a lipofobia?


Sibilia: Eu vejo um vínculo entre ambos os fenômenos, pois eles decorrem do modo de produção e consumo capitalista, com sua capacidade de produzir doses imensas de falta e de excesso ao mesmo tempo. Em ambos extremos do sofrimento corporal contemporâneo, tanto nesses corpos ameaçados pelo fantasma da fome como nesses outros organismos humanos que são assombrados pelo fantasma da obesidade, impõe-se o mesmo sacrifício: não comer. É nesse quadro que se espalha a lipofobia, uma rejeição cada vez mais violenta às adiposidades que recheiam os corpos próprios e alheios. Trata-se de uma nova forma de abjeção que condena moralmente os corpos por serem impuros -e prescreve, portanto, o devido sacrifício visando a extirpar as impurezas.


Diz-se muito comumente que vivemos sob a égide da fúria consumista e da voracidade hedonista, porém, muitas das teorias sobre a modernidade defendem a idéia da “administração”, seja da satisfação (Marcuse), da insatisfação (Lacan), ou mesmo a gestão-de-si (Foucault), linha a partir da qual você desenvolve sua pesquisa. Neste panorama do “Goze!... Mas com moderação!”, como se dá a auto-gestão e administração dos riscos?


Sibilia: Trata-se de um mecanismo de poder muito ardiloso. Suas premissas dizem o seguinte: com todas as técnicas, serviços e produtos de embelezamento hoje disponíveis no mercado, “só é gordo e feio quem quer”. Como a responsabilidade é individual, cabe a cada um de nós o dever de administrar corretamente os prazeres e as privações; tudo em nome desse ideal do “corpo perfeito”. Nesse sentido, reveste um tom de conquista moral a capacidade pessoal de se aproximar do padrão de beleza hegemônico. Ao mesmo tempo, seu fatal distanciamento denota alguma falha igualmente moral.


As novas práticas ascéticas e os novos sacrifícios, isto é, esta contemporânea “via crúcis do corpo”, estariam em consonância com um novo tipo de redenção? Penso em uma redenção não-transcendental, mas alocada na conquista da “auto-estima”. Redenção como aceitação-de-si e inserção social. Ao menos é sobre esta dramaturgia que se constroem os reality shows de transformação estética, a partir do sacrifício imposto pelas intervenções cirúrgicas e sua conseqüente premiação.


Sibilia: É curioso que exista esta propensão ao sacrifício numa era como a nossa, que reivindica o gozo constante e praticamente compulsório. No entanto, qualquer sacrifício parece válido em nome desse ideal do “corpo perfeito”, uma meta aparentemente tão prosaica ou até mesmo banal.

Contudo, inclusive a própria morte é válida em seu nome (e somente em seu nome), como é o caso das jovens anoréxicas, por exemplo, ou das vítimas de complicações nas cirurgias plásticas ou do consumo de anabolizantes de uso veterinário. Alguns autores aludem a um novo tipo de “ascetismo” hoje em crescimento: uma série de rituais de expurgação carnal que não procuram atingir a transcendência espiritual, mas apenas a aproximação desse ideal do corpo imagético.


Você associaria a tirania da pureza, da beleza e da magreza (como forma de “limpeza”) a um ideário protofascista? Neste caso, quais seriam os deslocamentos e as continuidades?


Sibilia: A pureza da raça ariana foi uma das premissas do ideário nazista. O “corpo belo” do ariano era um ideal a ser atingido, enquanto todos os outros organismos humanos eram definidos como impuros. Entretanto, a pureza do ariano não era definida por sua “interioridade”, no sentido das capacidades intelectuais ou morais pacientemente cultivadas por cada indivíduo. Ao contrário, essa pureza era definida apenas por uma série de atributos físicos “exteriores”: a cor dos olhos e do cabelo, certa altura e medidas corporais, a posse de certos genes e de certo sangue. A impureza, no caso do regime nazista, devia ser eliminada junto com os corpos impuros.


Já na nossa sociedade contemporânea, apesar das inquietantes similitudes, a impureza deve ser extraída dos corpos impuros. Estes podem (e devem) ser purificados. Isso significa que todas as aberrações que conspiram contra o nosso ideal do “corpo perfeito” têm possibilidade de cura: podem ser lipoaspiradas, esculpidas, retocadas. Poderíamos dizer que hoje vivemos em um regime de totalitarismo de mercado, que visa, portanto, à inclusão dos consumidores, ao contrário dos fascismos que vigoraram na primeira metade do século XX, que visavam à exclusão de certos cidadãos considerados inferiores ou impuros.


É cada vez mais comum o uso de softwares de “correção” e “lipoaspiração” de imagens, empenhados na construção e digitalização de um corpo que seja belo e desprovido de qualquer vestígio material que o macule. Através deles, marcas do tempo e linhas de expressão são apaziguadas, rugas esticadas, manchas uniformizadas e gorduras localizadas estirpadas. Esses processos, possíveis através do “popular” programa “photoshop” e da técnica do “retouching”, têm migrado para poderosos softwares desenvolvidos em parceria com emissoras de TV. É o caso do programa “Baselight”, utilizado na novela “Páginas da Vida”, da Globo. Essa é uma tendência -e uma demanda- da qual é difícil escapar?


Sibilia: Já estão à venda, também, certas câmeras digitais de fotografias que possuem esse recurso de “emagrecimento” dos corpos fotografados. Acredito que esta mania do apagamento e do retoque digital, esta rejeição das viscosidades orgânicas que supuram os corpos reais, suscita também a reação contrária: uma “vontade de real” que se desenvolve cada vez com mais vigor em nossa cultura.


Essa crescente busca pelo “verdadeiro”, que é a outra face deste movimento de gradativa falsificação das imagens, percebe-se no auge do “realismo sujo” nas artes contemporâneas, por exemplo -notoriamente no cinema e no audiovisual, mas a onda já chegou a atingir até mesmo as publicidades de produtos de beleza.


Sob essa perspectiva, podemos interpretar o sucesso mundial de uma campanha publicitária como a do “creme modelador” da marca Dove, que “ousou” ao colocar um grupo de mulheres reais no lugar normalmente restrito aos corpos imagéticos das modelos -muito embora tais “corpos reais” também tenham sido trabalhados digitalmente com as costumeiras ferramentas de edição digital de imagens. “Testado em curvas reais”, sublinhava o anúncio do produto, enquanto mostrava os corpos seminus de um grupo de mulheres jovens; e ainda esclarecia que era fácil “firmar” os corpos das modelos, difícil mesmo era fazê-lo com as “curvas de verdade” das mulheres reais.


A mensagem, portanto, não parece diferir muito de todas as outras publicidades do gênero: é preciso usar este produto para que você, consumidor demasiadamente orgânico, carnal e imperfeito, possa se aproximar daquele corpo imagético que tanto deseja, porém jamais poderá atingir.


Em que medida as práticas de digitalização e virtualização do corpo poderiam estar em consonância com outras práticas, que você tem também estudado, de digitalização e virtualização do “eu” em blogs, flogs e toda sorte dos novos diários “íntimos” na internet? Ambos os fenômenos seriam frutos da mesma demanda por visibilidade e reconhecimento de si nos olhos alheios? E ambos se valeriam de certa indistinção entre pessoa e personagem?


Sibilia: Podemos comparar os blogs que hoje proliferam na internet com os diários íntimos tradicionais, como duas ferramentas bem diferentes de criação de si. Enquanto as velhas confissões escritas no papel demandavam a solidão, o silêncio e a preservação do segredo na privacidade do quarto próprio -todos elementos característicos da era burguesa-, os novos gêneros autobiográficos que hoje inundam a Web são ferramentas para a construção de si na visibilidade das telas globais.


Por isso, podemos dizer que se trata de mais um sintoma desses deslocamentos dos eixos em torno dos quais as subjetividades se constroem, tendendo a uma gradativa exteriorização do eu e a uma construção de si alterdirigida. Assim, hoje prolifera um tipo de subjetividade que precisa da confirmação do olhar alheio para consumar a sua existência: um eu que precisa aparecer para ser.


Essa construção de si como personagem visível denota um flagrante pavor da solidão: diferentemente das “pessoas reais”, os personagens nunca estão a sós, pois sempre tem alguém olhando ou acompanhando tudo o que eles fazem (e também tudo o que eles não fazem). Nesse sentido, as novas subjetividades construídas na visibilidade da pele e das telas denotam uma fragilidade, uma vulnerabilidade nessa dependência do olhar alheio e nessa perda das âncoras que sustentavam o eu moderno.


(Publicado em 16/1/2007)

Ilana Feldman - É formada em cinema pela Universidade Federal Fluminense, onde faz mestrado. Dirigiu o documentário em média-metragem "Se tu Fores", que ganhou o Prêmio Itaú Cultural para Novos Realizadores.


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Obsolescência do humano serve à economia e à tecnociência

http://www.comciencia.br/entrevistas/2005/10/entrevista1.htm


Em entrevista à ComCiência, a antropóloga argentina Maria Paula Sibilia contesta a idéia de obsolescência do humano. Para ela essa é uma nova verdade, construída a partir da racionalidade econômica aliada à racionalidade tecnocientífica, e que tem sido alardeada e cristalizada no senso-comum, sem a devida crítica. Autora do livro O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais, resultante das reflexões que fez em seu mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), Sibilia compõe o grupo “Subjetividade e história”, liderado por Jurandir Freire Costa, tendo como linha de pesquisa o “Sujeito cerebral e o impacto das neurociências”.


ComCiência - Pode-se considerar a superação ou obsolescência do humano como um produto da convergência entre a racionalidade econômica, segundo a qual “não há alternativa”, e a racionalidade tecnocientífica, segundo a qual tudo é manipulável em termos de informação?

Sibilia - Eu procurei analisar a “obsolescência do humano” como uma série de discursos, imagens e metáforas que nos últimos anos vêm surgindo de diversos campos (artes, jornalismo, publicidade, academia, tecnociência, entretenimento), que são copiosamente divulgadas nas diversas mídias e estão se cristalizando no senso-comum como uma série de verdades cada vez mais naturalizadas. A intenção dessa minha pesquisa consiste, precisamente, em desnaturalizar essas novas verdades, assinalando as suas raízes históricas — e portanto inventadas, alinhadas em um determinado projeto sócio-político, econômico e cultural. Esse projeto ou regime histórico hoje vigora em boa parte do nosso planeta globalizado, e poderíamos dizer que nele convergem uma racionalidade econômica que desconhece qualquer alternativa possível, e uma racionalidade tecnocientífica que tende a converter tudo em informação, inclusive os seres humanos, a natureza e a vida. De acordo com essa perspectiva, a carne que conforma os nossos corpos vive sob a ameaça da condenação à “obsolescência”, e é acusada de “impura” por ser finita, perecível e demasiadamente orgânica. É por causa disso que deve ser cuidadosamente submetida ao imperativo do upgrade constante, da reciclagem e da atualização permanentes.


ComCiência - Pode-se dizer que o homem se tornou obsoleto? Que fatores e processos contribuíram para essa obsolescência?

Sibilia - Podemos dizer que as atuais condições sócio-políticas, econômicas e culturais têm tornado “obsoleto” um certo tipo de homem, uma certa definição do que é ser humano. Assim, neste novo contexto, os tipos de corpos e subjetividades que serviam aos interesses do capitalismo industrial do século XIX e da primeira metade do século XX, por exemplo, hoje estariam se tornando “obsoletos” porque não são mais “úteis” aos interesses do capitalismo contemporâneo. Se aquele regime histórico demandava grandes contingentes de sujeitos “disciplinados”, corpos “dóceis e úteis”, especialmente treinados para saciar as engrenagens da sociedade industrial e subjetividades compatíveis com toda aquela maquinaria — como bem mostrou Michel Foucault em seus ensaios e como bem ilustrou o personagem de Charles Chaplin no filme Tempos modernos — a nova torção do capitalismo ancorado no consumo parece solicitar outras subjetividades e outros tipos de corpos: sujeitos ávidos, ansiosos, criativos, flexíveis. Entretanto, essas novas configurações corporais seriam igualmente “dóceis e úteis”, embora respondendo a outros interesses históricos.


ComCiência - Há algo de inevitável e irreversível na superação do homem? Qual o efeito dela sobre a subjetivação (formação dos sujeitos) contemporânea? A saída para o mal-estar causado por essa percepção pode ser buscada no velho humanismo – devemos tentar salvar o que há de humano em nós?

Sibilia - Foucault costumava dizer que a verdade é “uma espécie de erro” que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada “porque o longo cozimento da história a tornou inalterável”. Por sua vez, Gilles Deleuze dizia que cada época tem as verdades que merece, e que cabe aos jovens a tarefa de descobrir “a que somos levados a servir”. O pensamento desses autores continua vivo porque eles incitam ao questionamento permanente e estimulam as belas artes da suspeita: as verdades devem ser sempre desafiadas, questionadas, recriadas e reinventadas. Essa obra incumbe tanto à filosofia como às ciências e às artes. Não há nada de “inevitável” e de “irreversível”, portanto, cabe a nós a tarefa criativa (e eminentemente política) de definir o que somos, o que estamos nos tornando e o que gostaríamos de nos tornar.


ComCiência – É possível afirmar que a tecnociência não tem limites? Trata-se de Fausto derrotando Prometeu? Como e por quê?

Sibilia - É possível enxergar uma tendência a desafiar todos os limites nas pesquisas, projetos e descobertas mais recentes da nossa tecnociência — sobretudo em certas áreas especialmente privilegiadas, como a teleinformática e as ciências da vida, por exemplo. A ciência moderna tinha como emblema a figura do titã grego Prometeu, que foi duramente punido pelos deuses por ter cometido uma terrível ousadia: usurpar as prerrogativas divinas entregando o segredo do fogo aos homens. Esse mito lembra algo fundamental: há certas coisas que não podem (e não devem) ser conhecidas. Assuntos tão graves como o segredo da vida e os mistérios da evolução biológica, por exemplo, excederiam a racionalidade tecnocientífica, demarcando limites que exigiam um solene respeito, pois questões dessa índole deviam ser deixadas em mãos de outros campos, como as artes, a ética, a religião ou a política. Essa vertente prometéica, porém, sempre esteve em tensão com outro vetor que também constitui as bases filosóficas do saber hegemônico ocidental: o impulso fáustico, que tende a recorrer à técnica para desafiar todo limite e ultrapassar as barreiras que constringem a condição humana. Segundo as análises do sociólogo e epistemólogo português Hermínio Martins, a tecnociência contemporânea vivencia um desbalançamento em seus fundamentos filosóficos, com os notáveis avanços da vertente fáustica em campos como as ciências da vida e a teleinformática. É nesse sentido que o ambicioso Fausto estaria derrotando o castigado Prometeu.


Comciência - Um pouco de ficção científica: o futuro se pareceria mais com o esboçado em Gattaca ou, por exemplo, seria mais parecido com o de Blade Runner ou o de Matrix? É possível ser otimista?

Sibilia - Eu acredito que cada um desses filmes teve a virtude de mostrar certas tendências do nosso presente, mais que do nosso futuro: certos fascínios e certos temores que envolvem os poderes dos nossos saberes. Assim como Gattaca questiona a prepotência e a tolice de certo determinismo genético cada vez mais onipresente, Matrix expõe as angústias da “virtualização” e das tendências desmaterializantes da cibercultura. Por sua vez, Blade Runner discute o que é ser humano em um mundo no qual as antigas distinções entre natureza e artifício são cada vez menos nítidas, e as criações “perfeitas” ou “monstruosas” da mais nova tecnociência iludem com sua ambigüidade.


ComCiência - Se o humano, por assim dizer, já era, o que dizer de seu “duplo”, seu “outro”, a natureza? A natureza e o humano podem ser reduzidos a códigos, informações? Quais as implicações dessas transformações do homem e da natureza para a compreensão de fenômenos como vida, morte e reprodução? Quais são suas conseqüências para o exercício do poder ou do governo?

Sibilia - O que entendemos por “natureza” é um conceito, e esse conjunto de idéias e imagens costuma mudar ao sabor da história. Se na Idade Média a natureza era encantada, enigmática e misteriosa, pois correspondia a um universo sacralizado e era compatível com um homem criado “à imagem divina”, a partir do século XVII essa natureza precisou ser reconfigurada. Respondendo aos novos ritmos e exigências da era industrial, a natureza foi gradativamente desencantada e mecanizada. Esse processo atingiu seu apogeu com a teoria da evolução das espécies, enunciada por Charles Darwin em meados do século XIX. Nas últimas décadas, porém, sob a influência da biologia molecular e de outras áreas especialmente candentes da mais nova tecnociência, mais uma vez a natureza está sob a pressão de uma nova reconfiguração histórica. Com a teoria molecular do código genético, a natureza se tornou programável, e está ingressando — ela também — no processo de digitalização universal que marca a nossa era. Um dos grandes sonhos da nossa tecnociência é a promessa de que os “engenheiros da vida” possam efetuar ajustes nos códigos informáticos que animam os organismos vivos, assim como os programadores de computador editam software. Todas essas reconfigurações e redefinições da natureza, da vida e do homem têm profundas implicações em todos os âmbitos, e por isso é de extrema relevância que não permaneçam impensadas.


Atualizado em 10/10/2005

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Corpos dóceis e corpos ligados

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Paula Sibilia

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Dos “corpos dóceis” aos “corpos ligados”Após analisar a presente construção científico-tecnológica e discursiva do corpo “pós-orgânico”, “pós-biológico” e “pós-humano”, surge uma pergunta desafiadora: quais são as implicações políticas e econômicas destes processos, numa sociedade voltada para a produção de consumidores dos mercados globalizados? Se, como mostrou Michel Foucault, todas as sociedades produzem determinados tipos de corpos e subjetividades, e determinados saberes sobre eles, então cabe perguntar: que tipo de corpo e que tipo de sujeito estão sendo criados na nossa “sociedade tecnológica”, junto com os “saberes” aqui analisados?


Para tentar responder a estas perguntas, talvez seja preciso inserir estas novas configurações do corpo e do sujeito na problemática das “sociedades disciplinares” do próprio Foucault, que fora re-elaborada por Gilles Deleuze para estendê-la à atual sociedade informatizada, através do conceito de “sociedades de controle”. Ao mudar o foco da produção para o consumo, a sociedade ocidental já não parece precisar tanto daqueles “corpos dóceis” destinados a alimentar as engrenagens industriais, quanto de novos tipos de corpos (acaso “ávidos”), dispostos a consumir os produtos e serviços gerados pelo novo capitalismo de sobreprodução e marketing. Corpos que intimam com a tecnologia: corpos ligados, conectados, sintonizados, “antenados”. Corpos “superexcitados”, hiper-estimulados e aparelhados pela tecnociência. Corpos permanentemente ameaçados pelo fantasma da própria obsolescência; corpos ansiosamente submetidos ao turbilhão do upgrade constante. Corpos “fáusticos”.


Quando o filósofo alemão Peter Sloterdijk expressou a sua preocupação com o surgimento de uma nova sociedade de “animais domésticos”, norteada pelas “antropotécnicas” e pela possibilidade de efetuar uma “reforma genética” que poderá levar a um “planejamento explicito” do gênero humano, ele próprio deslizou uma suspeita: “não seria inócuo que homens criassem homens com vistas à inocuidade”(19).

Porém, o que é aquilo que estaríamos nos tornando, ainda é uma pergunta sem resposta. Um “impensado” que deve ser pensado com urgência, pois “lutas inevitáveis começarão a travar-se sobre o direcionamento da criação dos seres humanos” (20).


Como indicou Deleuze no seu “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”: as novas tecnologias inauguraram instâncias subjetivantes capazes de substituir as velhas instituições de confinamento, típicas das sociedades disciplinares hoje em crise. Cabe refletir, então, acerca do papel desse novo sujeito aqui analisado, o “homem biotecnológico e teleinformático” de vocação fáustica, neste complexo regime de poder.

Quais seriam as suas limitações, e quais as suas opções de resistência e de criação? Crescerão as possibilidades tecno-demiúrgicas de produção de si mesmo e do mundo? Ou, pelo contrário, diminuirão as dimensões pública e política, face à utopia do conforto e as tiranias do upgrade?


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No reino do Super-Homem e da Mulher-Maravilha
http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=183&rv=Literatura


Gustavo Dumas


A pós-história de um ser humano condenado a um número


Um importante livro lançado no ano passado não recebeu ainda a devida atenção. Resultado de uma tese de mestrado da autora argentina Paula Sibilia, defendida na UFF, "O homem pós-orgânico – corpo, subjetividade e tecnologias digitais" [1] é uma bem escrita e fundamentada denúncia, sem exageros acadêmicos ou afetações desnecessárias e descartáveis, da criação discursiva e sustentação ideológica de um novo modelo de poder, calcado no desenvolvimento pleno e ilimitado da tecnociência e no desejo amargo de um ser humano que quer evitar a morte a qualquer custo e em todas as suas acepções. Descrente espiritualmente de sua condição e desiludido com as opções de fé religiosa num mundo cada vez mais multifacetado, portanto complexo e caótico, resta ao homem atual a busca da virtualidade como forma de permanência. O corpo torna-se um obstáculo obsoleto a este homem em tempo real e total. Se, como Nietzsche diz, o homem criou Deus, agora parece ter chegado a hora de um acerto de contas, pois sua criatura não "funciona" mais, não atende às demandas de mercado de seu cliente, o homem. Faz-se inevitável a criação de um novo deus, este com inicial minúscula, desespiritualizado, para programar cada homem, cada qual tornando-se seu próprio demiurgo, o deus-em-si, de e para si, um deus que conserte os "defeitos" e conserve o produto do anterior. O Deus que o homem criara – e continua criando – para explicar a Mãe Natureza perde o encanto na medida em que os "mistérios" desta podem ser dissecados e, melhor, determinados pelo homem-deus programador e "digitalizado".


O homem deseja superar a organicidade que o prende a um modelo de corpo arcaico, suporte frágil de sua configuração genética. Eis o homem "pós-orgânico", na falta de um termo melhor. Confuso? Não tanto se pensarmos no nosso dia-a-dia. O homem de hoje não vive sem uma prótese, sem ferramentas de otimização de suas capacidades e atenuação de suas limitações físicas. Telefones celulares, computadores portáteis, internet e diversos outros aparelhos desvinculam o homem de sua localização espaço-temporal e virtualizam sua existência. Trata-se de um homem em rede, conectado, plugado no fio-terra de uma máquina-mundo que lhe exige desempenho e funcionalidade sempre. A medicina trata de alongar essas potencialidades: a expectativa de vida não cessa de crescer. Morrer, logo, pode se tornar uma mera opção.


A autora lista e analisa os dois mitos fundadores da tecnociência contemporânea: os mitos de Prometeu, o ladrão do fogo que municia tecnologicamente o homem, que entretanto é castigado com severidade pelos deuses, por ter quebrado uma lei; e de Fausto, o amigo do Diabo, a quem nada é impossível conquistar, ambicioso, arrojado, dedicado a uma superação constante de limites, ser desprendido de amarras quaisquer – protótipo do homem contemporâneo? Sibilia afirma a decadência de uma tradição prometéica na tecnociência contemporânea, em prol da irrupção de uma nova tradição, de vocação fáustica. Se a primeira reconhecia seus limites, a segunda os desconhece. A questão de ordem é saber se uma substitui de fato a outra ou se ambas convivem harmonicamente. Prometeu incita a Era da Máquina que implica, segundo os termos do filósofo Michel Foucault, uma sociedade disciplinar, de corpos dóceis e úteis, trabalhando em confinamento e de modo cronometrado e repetitivo para a produção de bens de consumo. Já Fausto incita a Era da Informação, que implica uma sociedade informada, de corpos carentes de uma atualização, de um upgrade constante para o atendimento de suas novas necessidades, trabalhando, construindo e consumindo novas identidades em tempo contínuo e independente de seu espaço e tempo. Quanto à subjetividade, pois, passa-se de um sujeito adestrado, "produtor disciplinado", confinado em instituições de rígida vigilância e hierarquia fechada (na lógica do "cada macaco no seu galho") e batendo cartão de ponto, para um sujeito acessível, "consumidor controlado", endividado e por isso mesmo disposto a cumprir metas, trabalhar em equipe, gerenciando um serviço e por vezes sendo até o operário de si mesmo. Trocam-se os muros das fábricas pelas "coleiras eletrônicas" (termo cunhado pelo filósofo Gilles Deleuze) das empresas, onde todos são passíveis de um rastreamento em tempo contínuo.


Feito este resumo muito geral do livro, cabe agora problematizar a questão. Para Sibilia, Fausto supera Prometeu. Fenece o homem-máquina e triunfa o homem-informação. O ser humano estaria próximo de conhecer o código da vida, a programação de suas informações genéticas. O segredo da vida seria um número, um dado, uma combinação matemática. O modo de funcionamento deste homem... Peralá: modo de funcionamento?! Este não seria o homem da informação, do conhecimento, da virtualidade? Pois é: este mesmo homem em vias de digitalizar e assim "arquivar" e "salvar" (imortalizar) suas "informações" (vida), está mais operacional e utilitarista do que nunca, mais mecânico que antes. O emblema continua sendo o relógio: "(...) ele continua liderando o cenário, sem dúvida, embora também tenha sofrido o upgrade de praxe ao passar das leis mecânicas e analógicas para as informáticas e digitais. A função do relógio foi completamente internalizada, com uma proliferação de modelos nos lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas das cidades, e inclusive embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso cotidiano." (Pp. 29-30.) Cabe ressalvar, porém, que a lógica da informática, embora sugira fluidez e flexibilidade, também é uma lógica mecânica, binária, simplista e limitada na origem, que tem no relógio seu sustentáculo. Promoteu, pois, é pai e amigo de Fausto, e, na ficção real da aventura pós-orgânica do homem contemporâneo, é quem vai sustentar o filho transgressor em suas conquistas. Prometeu é a chama que acende o sonho de Fausto, o herói programador de um novo mapa genético e (por que não?!) cultural da espécie humana. O único ente obsoleto nessa linda história (ou pós-história?) de conquistas fica mesmo sendo Darwin, com sua crença risível de que a natureza evolui por uma seleção natural das espécies. Darwin não poderia imaginar que a seleção seria "artificial", planejada pelo homem.


Por que e como a orientação prometéica e a fáustica conseguem conviver é o segredo sutil do novo modelo de poder emergente. Remete a um trecho inicial de outro livro igualmente importante: "A Sociedade do Espetáculo" [2], do francês Guy Debord, de 1968.


"Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. "


Consideremos, apenas, por correção, que também não há, nunca houve nada que fosse vivido diretamente. Todo vivido transita pela linguagem. A diferença agora é a especialização dessa linguagem, potencialmente mais eficaz, tornando mais indireto ou menos direto o contato, a relação humana. O próprio Debord confirma isso: "A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo." A diferença reside num deslocamento de referências: hoje é a linguagem que transita pelo vivido. O fato é a linguagem, a imagem resultante de uma experiência vivida e midiatizada. A estética, portanto, e, mais que ela, a cosmética, o perfume, o entorno, a produção ou, em suma, o espetáculo proporcionado é o que define os fenômenos e os seres. E o espetáculo é a forma de manifestação, o vínculo sutil entre os homens da Era da Máquina e os homens da Era da Informação. O espetáculo é a linguagem, a fôrma que permite a simbiose homem-máquina-informação, que vai resultar num modelo de homem obcecado por aperfeiçoamento técnico-operacional e pela acumulação de informações, um homem depositário de um manancial de conhecimentos de que a sociedade do espetáculo vai dispor conforme lhe for conveniente e oportuno. A subjetividade molda-se assim às demandas de mercado, tornando-se descartável e em upgrade constante. Muda a equação da existência: do "penso; logo, existo" de Descartes para o "estou atualizado; logo, funciono" da era das máquinas inteligentes e dos homens que se limitam a operá-las ou programá-las. O homem-máquina trabalhando nas diversas máquinas-homens, acumulando e disseminando informações.


A sociedade do espetáculo também preconiza, segundo Debord, o fim da história e da cultura, ou ao menos sua negação insistente. Em sua pós-história, portanto, o homem estaria condenado a ser um número: número (variável, dado, informação) de um programa; e número (atração) do espetáculo que programa o dia-a-dia de cada um.


Há, além e por conta disso, todo um ideal de assepsia e beleza. A assepsia e o embelezamento permitem disfarçar a precariedade física do homem. A aparência passa a dizer o que se quer, e o que se é. A imagem vale mais que o fato. Afinal é a imagem o que vai ser vendido, e não o fato em si, tampouco o ser. No jogo erótico, o corpo da mulher é a máquina perfeita que vai gerar a cobiça do homem, como um carro muito possante que se deve trabalhar para juntar dinheiro e conquistar (comprar). Para domar esta Mulher-Maravilha, só mesmo um Super-Homem. E haja academia, bombas energéticas, complexos vitamínicos, silicone, lipoaspirações e outros "melhoramentos" para configurar o corpo e prepará-lo para investir no mercado de homens e mulheres disponíveis para uma conexão. No livro de Paula Sibilia, a conectividade é mostrada como a nova medida de presença/existência, a fornecer um novo sentido do "eu". Seria este novo sentido o sentido da anulação do "eu"?!

Juntando Foucault, Debord e Deleuze num mesmo saco, podemos formular, pois, que os corpos continuam dóceis ao trabalho, obedientes ao espetáculo e úteis ao mercado. No fim, nossos atores sexuais vão ser os peitinhos de silicone, a bundinha genérica, a vagina transgênica e a pica de plástico, órgãos com vida própria e loucos por uma conexão, um funcionamento, carentes de uma utilidade. E nós seremos os robôs de nós mesmos, frígidos, impessoais, mas felizes. Teremos atingido nossos objetivos, batido nossas metas de vida. Embora programados para a eternidade, poderemos morrer, sim, não de infarto ou câncer, mas de pânico, tédio ou vazio existencial, sem heroísmo algum, em meio ao espetáculo cotidiano.


[1] SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

[2] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de

Janeiro: Contraponto, 1997. P. 13.

Sobre o autor:

Gustavo Dumas é escritor e revisor de textos. Autor de "Solturas, balões e bolinhas de papel", "O povo e o populacro" e "Mito da origem do futebol".

Matéria publicada em 01/09/2003


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Do homo psico-lógico ao homo tecno-lógico : a crise da interioridade

http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/semiosfera07/conteudo_mm_psibilia.htm


Identidades e culturas

Semiosfera ano 3, nº 7

Paula Sibilia


Resumo: O artigo aborda um fenômeno contemporâneo, sintetizado em certo declínio da interioridade psicológica que costumava embasar a subjetividade moderna. Acompanhando as fortes transformações econômicas, sociais, políticas e tecnológicas das últimas décadas, hoje ganham relevância alguns elementos contrários à primazia de uma “vida interior” como fator determinante da conformação subjetiva. As aparências, os sinais externos, as formas e as marcas corporais modelam, cada vez com mais força, a definição da identidade dos sujeitos. Florescem, assim, nos ambientes aglutinados pelo mercado global, formas subjetivas ancoradas na exterioridade e na visibilidade. O corpo torna-se um objeto de design, numa espetacularização do eu com recursos performáticos. O texto esboça, também, uma genealogia da idéia de interioridade ao longo da tradição ocidental, focalizando a sua cristalização em certas práticas de expressão e comunicação: os diários íntimos e, mais recentemente, os weblogs.


Palavras-chave: comunicação, psicologia, identidade e tecnologia.


INTRODUÇÃO


Uma pergunta inspirou este texto: há lugar para a interioridade do sujeito numa cultura sustentada na eficácia, isto é, na própria capacidade de produzir efeitos? A resposta é uma hipótese que será apresentada de modo exploratório ao longo destas páginas, esboçando uma explicação possível para um fenômeno contemporâneo: a crise da interioridade psicológica que costumava embasar a subjetividade moderna e a sua instigante metamorfose em andamento. Pois, acompanhando as fortes transformações econômicas, sociais, políticas e tecnológicas das últimas décadas, parecem ganhar cada vez mais relevância alguns elementos contrários à primazia de uma “vida interior” que desempenhe um papel determinante na conformação subjetiva. Fatores como a visibilidade, as aparências, os sinais externos, as formas e as marcas corporais modelam, cada vez com mais força, a definição da identidade dos sujeitos – ofuscando paulatinamente aquele espaço “interno” alojado nas profundezas da alma humana.


Se a sociedade contemporânea é, de fato, uma “cultura sem fundamento”, que dispensa a pergunta pela causa e pelo sentido dos efeitos que ela incansavelmente produz, contentando-se apenas com a sua efetividade, então os enigmas do eu interiorizado – finamente esculpido ao longo da era moderna – perdem sentido e interesse, cedendo cada vez mais terreno àquilo que antes era considerado mero “sintoma visível” das obscuras realidades subjacentes. Assim, na atualidade, percebe-se um deslocamento daquele lócus outrora privilegiado de experimentação da vida subjetiva (a interioridade), bem como a emergência de modos de subjetivação mais afinados com o mundo contemporâneo e com a sua ênfase na eficácia tecno-lógica: subjetividades cada vez mais ancoradas na visibilidade e na exterioridade do corpo, na ligeireza da imagem, na superfície do que se vê, na espetacularização do eu com recursos performáticos e no imediatismo das sensações.



A cultura da “pílula mágica” e do mal-estar tecnicamente ajustável


Para começar a argumentação, pode ser interessante recorrer a uma imagem exemplar. Proponho, aqui, efetuar uma comparação entre dois elementos culturais bastante familiares para nós: o Prozac e a terapia psicanalítica.

O primeiro elemento do par é o remédio mais vendido em todo o mundo. Utilizado como anti-depressivo, o Prozac é um grande sucesso mercadológico na atualidade, comparável ao que algum tempo atrás foram o Lexotan e outros ansiolíticos. Consumidos fora dos limites da patologia clássica para “ficar bem” ou para “manter a performance”, tais medicamentos são expoentes objetivados de um tipo de saber médico atualmente em auge: aquele que se apóia em alicerces biologicistas para explicar todas as arestas do comportamento humano e dos processos mentais. Nas últimas décadas, a progressiva fisicalização da vida subjetiva tem conduzido à medicalização compulsória da existência no Ocidente – basta pensar, por exemplo, na relevância que vêm ganhando certas áreas do conhecimento médico como a genética e as neurociências. Trata-se, precisamente, de um tipo de intervenção tecnocientífica que age sobre os sintomas de maneira ultraveloz e superefetiva, eliminando o mal-estar (psíquico ou físico) que, cada vez mais, é experimentado e expressado como uma mera disfunção a ser corrigida tecnicamente. A performance física ou mental que falha deve ser ajustada.


Por sua vez, o outro tratamento mencionado na comparação acima proposta – a terapia psicanalítica clássica – representa um tipo de saber e de prática médica bastante diferente. Ligada ao paradigma da “interioridade” inerente ao homo psychologicus, tal terapia é longa e dolorosa por definição. Desprezando os meros sintomas, a sua proposta consiste em mergulhar nas misteriosas entranhas da alma humana à procura das “causas profundas” dos sofrimentos psíquicos, das tormentas do espírito e das tragédias existenciais; todos frutos, enfim, da experiência íntima e individual de um sujeito dotado de uma certa “vida interior”. Neste caso, o mal-estar é compreendido de outra forma, como um complicado conflito interno que se distancia da “disfunção tecnicamente ajustável” mencionada no parágrafo anterior. Praticando uma visão bem mais holística e contextualizada, este tipo de saber considera a causalidade múltipla dos processos mórbidos – incluindo a forte influência do ambiente e da história vital e singular de cada paciente – para efetuar o diagnóstico e aplicar o tratamento. Como afirma um especialista em história da psiquiatria, o francês Robert Castel: “Já faz tempo, Sartre denunciava na velha introspecção a tentação de aprofundar em si mesmo até o infinito, para atravessar o espelho no qual a subjetividade se perde através da multiplicidade de seus reflexos”. Na atualidade, porém, segundo o próprio Castel, o objetivo consiste em “obter uma mais-valia de gozo e eficiência mais do que um conjunto de conhecimentos das próprias profundezas” (Castel, 1995, p.9).


O enorme sucesso da nova artilharia psicofarmacológica, por sua vez, veio reforçar um tipo de tratamento distinto, de clara linhagem behaviorista, que busca resolver quimicamente os problemas e costuma ter efeitos imediatos na eliminação dos sintomas. Evitam-se, desse modo, as longas e penosas sondagens nas profundezas da alma. Ao diminuir a relevância dessa esfera “interior”, ligada aos segredos invioláveis da intimidade individual, qualquer tipo de mal-estar passa a ser percebido como uma “falha”, um desvio que pode e deve ser corrigido. Assim, em vez de solicitar a interrogação, a interpretação e o mergulho no interior de uma subjetividade enigmática, as novas vivências demandam explicações técnicas e intervenções corretivas, numa cultura cientificista que privilegia a neuroquímica do cérebro em detrimento daquele denso tecido interno de crenças, desejos e afetos. Com as novas terapêuticas, os pacientes obtêm uma perfeita “mais-valia de gozo e eficiência”, retomando a expressão de Robert Castel.


Claramente, trata-se de duas definições do sofrimento humano, e em cada caso são oferecidas “soluções” diferentes para “resolver” o problema. Do conflito à disfunção, do tratamento psicanalítico às diversas modalidades de intervenção tecnocientífica no corpo que o mercado atual oferece. Uma dessas duas vertentes brotou das ciências humanas características da época moderna (psico-lógicas), enquanto a outra é fruto da tecnociência mais recente: a dos saberes tecno-lógicos que estão dando forma e consistência ao século XXI. Do mesmo modo, ambas focalizam dois tipos de subjetividades diferenciadas, baseadas em definições distintas do que é ser humano. Em síntese, trata-se de dois modelos subjetivos contrastantes, como será analisado nas próximas páginas: o da interioridade (em declínio) e o da visibilidade (em plena ascensão).



Metamorfoses da experiência subjetiva


As subjetividades são modos de estar no mundo. Seus contornos, portanto, são flexíveis e mudam ao sabor da história e das diversas tradições culturais, longe de toda essência fixa e estável. Não se trata, portanto, de algo vagamente imaterial ou que reside “dentro da cabeça”: o corpo é o suporte da subjetividade e a condição de possibilidade da vida subjetiva. Nesse sentido, entidades como o “espírito” e a “alma” são construções de carne. Por isso, afirma-se que a subjetividade é sempre e necessariamente embodied (encarnada em um corpo) e embedded (embebida numa cultura intersubjetiva). Por um lado, certas características biológicas traçam, em todos os casos, o horizonte e os limites da vida subjetiva de cada um. Por outro lado, a pregnância da cultura sobre cada indivíduo também é fundamental, pois toda a experiência é modulada pela interação com o mundo – nesse sentido, na linha de pensadores como Henri Bérgson e Maurice Merleau-Ponty, toda modificação dessas possibilidades de interação acaba alterando também o campo da experiência.


Refinando mais um pouco a abordagem, é possível dizer que a experiência subjetiva possui três dimensões ou perspectivas descritivas: no nível singular, a análise focaliza a trajetória única de cada indivíduo; o nível particular, por sua vez, detecta os elementos comuns a alguns sujeitos mas não a todos eles (a interioridade seria um bom exemplo deste tipo de atributos subjetivos, pois se trata de uma construção histórica); já no nível universal aparecem características comuns a toda a espécie humana, tais como a inscrição corporal da subjetividade e a sua organização por meio da linguagem.


A interioridade faz parte, portanto, de um modo de subjetivação historicamente determinado, que nos últimos três séculos tem vigorado de maneira hegemônica no mundo ocidental. Decorre de uma hipótese da teoria da mente “internalista”, que remete ao teatro cartesiano ou à idéia de um “cinema interno”, que ainda parece tão familiar nas cosmovisões contemporâneas. Seu germe, porém, é bem mais antigo, remontando inclusive à longínqua Alexandria do século I a.C. através do pensamento de filósofos como Sêneca, Epícteto e Marco Aurélio. A hipótese internalista da mente, entretanto, não é a única possível. Existem diversas noções externalistas, inclusive na cultura ocidental moderna, como aquelas que propõem que a consciência subjetiva é um produto da interação social e é nesse espaço intersubjetivo que ela nasce, se desenvolve e permanece, sem “interiorizações” de nenhum tipo. De acordo com este tipo de conceituações – que procuram superar as limitações do dualismo realidade interna/realidade externa – a mente seria uma construção intersubjetiva e, conseqüentemente, “exterior” ao sujeito.


A noção de interioridade, portanto, foi inventada: pertence a um tipo de formação subjetiva que emergiu num contexto determinado e em função de certas linhas de força que lhe deram origem. Como mostra Charles Taylor em seu livro As fontes do self, recorrendo a uma análise exaustiva de textos históricos e antropológicos, “as idéias modernas de interior e exterior são de fato estranhas e sem precedentes em outras culturas e épocas” (p.153). Por tal motivo, essa noção pode ser desmontada e desnaturalizada (apesar da óbvia dificuldade envolvida nessa empreitada) e, inclusive, é possível apresentar a hipótese de que poderia ser substituída por outras invenções. Isso é, precisamente, o que pretende mostrar este trabalho – embora frisando que ainda se trata de um componente fundamental da subjetividade ocidental, cuja força persiste e continua a modelar o mundo.



Uma genealogia da interioridade


Uma das perguntas fundamentais da obra de Michel Foucault se refere à genealogia do sujeito: como se forma uma subjetividade determinada (especificamente, a nossa) por meio de certas práticas discursivas e não-discursivas? Para elaborar uma resposta, o filósofo remonta à Antiguidade clássica e verifica que lá também houve uma certa tematização do sujeito; porém, este habitava o âmbito público e não possuía a experiência daquilo que nós conhecemos como “interioridade”. Assim, por exemplo, no mundo clássico, o sexo não pertencia ao domínio da intimidade; ao contrário, tratava-se de um tipo de comportamento político relacionado com o “domínio de si”, que envolvia a proposta de “ser livre” dominando até mesmo a própria carne. Para demonstrar isso, Foucault compara dois textos – A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, e um livro sobre a interpretação dos sonhos escrito no século III d.C. pelo filósofo pagão Artemidoro – e prova que seus sentidos são bem diferentes. Enquanto o segundo segue o modelo da penetração (o importante é o que cada um faz com os outros), o primeiro segue o modelo da ereção (o que interessa é a relação do eu com seu próprio desejo). É precisamente na obra de Agostinho que começam a surgir as metáforas da introspecção e as exigências do auto-exame perpétuo.


Influenciado por Platão – cujas doutrinas conheceu através de Plotino – Santo Agostinho foi um monge que viveu nos séculos IV e V d.C., habitualmente reconhecido como “o pai da interioridade”. Agostino apresentou uma importante novidade histórica: a auto-exploração como um caminho para chegar a Deus. “Noli foras ire, in teipsum redi; in interiori homine habitat veritas” (TAYLOR, op. cit. pp. 171-172. “Não vá para fora, volte para dentro de si mesmo; pois no homem interior mora a verdade”). Ao olhar para dentro e se conhecer profundamente, seria possível alcançar a verdadeira natureza: o eu como uma criatura. Assim, conhecer a si mesmo passa a ser um imperativo: é preciso fazer uma hermenêutica incessante de si, uma reflexão radical, pois no final dessa busca pode-se encontrar a transcendência.


Fica delineada, desse modo, uma primeira formulação do “interior” do sujeito como o lugar da verdade e da autenticidade, um elemento fundamental da cultura moderna. Na perspectiva agostiniana, por exemplo, o castigo de Deus a Adão foi a distância dele com relação a ele mesmo. Não é difícil inferir que essa dimensão de si que, embora sendo estranha ao eu, está dentro dele é uma idéia da qual é tributária uma infinidade de desenvolvimentos modernos, do romantismo à psicanálise.


Os textos de Agostinho foram retomados no final da Renascença, com um intenso florescimento nos séculos XVI e XVII. Suas idéias prenunciaram o deslocamento para o centro do homem que seria explicitado de maneira definitiva por René Descartes em seu “voltar-se para dentro”. Pois a perspectiva do eu penso (logo existo) não parte do mundo material e exterior – daquele grande “fora” – mas, precisamente, da “interioridade” imaterial da mente. Na tentativa de provar que seria possível atingir a verdade por meio da dúvida metódica, chegando ao domínio de si graças à racionalidade, o filósofo localizava na razão o fundamento da existência do eu. De acordo com a visão cartesiana, Deus continuava a ser a condição de possibilidade do homem; entretanto, as fontes morais do eu foram retiradas dos terrenos divinos e conduzidas para o interior do sujeito. O “voltar-se para dentro” de Descartes, portanto, não visa mais à busca de um encontro com Deus no interior da subjetividade, como era o caso de Santo Agostinho. “O que agora encontro sou eu mesmo: adquiro uma clareza e uma plenitude de auto-presença que não tinha antes”, explica o mencionado Charles Taylor em sua análise do tema, e prossegue: “mas, a partir do que encontro aqui, a razão leva-me a inferir uma causa e uma garantia transcendente, sem as quais minhas capacidades humanas agora bem compreendidas não poderiam ser o que são” (Taylor, op. cit. p. 207). Assim, a idéia de interioridade continua polindo seus contornos, ganhando cada vez mais auto-suficiência junto às capacidades autônomas de ordenamento por meio da razão.


Continuando esta sucinta (e algo errática) viagem genealógica, outra figura do âmbito religioso se impõe agora: Lutero, o monge rebelde que inaugurou o protestantismo no século XVI. Tendo lido a Bíblia e interpretado do seu modo as escrituras sagradas – atividade seriamente proibida pela Igreja na época –, Lutero pregava a liberdade de ler e interpretar os textos bíblicos dispensando toda e qualquer intermediação entre Deus e os homens. Pregando tanto o livre exame da Bíblia como o da própria consciência, o monge rebelde colocou em primeiro plano a responsabilidade individual. Nesse contexto, grande parte dos rituais eclesiásticos perdeu sentido, pois o indivíduo isolado e em contato com a sua interioridade passou a ocupar o centro da relação com Deus. Do mesmo modo, a ética protestante logo permearia toda a cultura capitalista – como assinalou Max Weber ao descrever seu “ascetismo no mundo interior” – disseminando a valorização do trabalho e da disciplina individual, em perfeita sintonia com a formação sociopolítica e econômica que estava sendo conformada naquele período histórico.


Retomando a linha da nossa argumentação, é impossível não mencionar uma figura fundamental para a coagulação da interioridade como aquele lugar misterioso, rico e sombrio, localizado “dentro de nós”, onde despontam e são cultivados os pensamentos, as idéias, os sentimentos e as emoções – em oposição ao mundo exterior e público, composto por tudo aquilo que está “fora” de nós. Trata-se de Michel de Montaigne, quem no século XVI inaugurou um novo gênero discursivo em seus célebres Ensaios, contribuindo para a secularização da idéia de interioridade ao aprofundar as virtudes da auto-exploração por meio da escrita. Nas páginas de sua bela obra, o pensador francês se propunha a atingir o conhecimento de si desdenhando os atributos “universais” do gênero humano para elogiar as singularidades.


Através desse mergulho em sua própria instabilidade interior, em toda a incerteza e transitoriedade de uma determinada experiência individual, Montaigne tentava demonstrar que a condição humana consiste precisamente nisso. Assim, dando vazão a um fluxo de palavras escritas em total solidão, o autor construiu uma auto-descrição que não buscava ser exemplar mas apenas fiel à imperfeição e à ambigüidade do seu eu, procurando “descobrir sua própria forma”, sua originalidade. Significativamente, Montaigne também resgatou o papel da imaginação e da criação do eu na própria escrita: “não fiz mais o meu livro do que ele a mim”, diz o autor a propósito dos Ensaios (Montaigne, Michel. Ensaios. Apud Taylor, op. cit., p. 238). Pois o sujeito moderno não se explora apenas, mas também se inventa usando toda a potência das palavras.



Privacidade e escrita de si


Assim como as atividades introspectivas ligadas à escrita íntima, a leitura em silêncio também foi uma novidade histórica. Inaugurada nos mosteiros medievais por volta dos séculos VI e VII, só se generalizaria bem mais tarde, como constatou no início do século XIII o monge cisterciense Richalm, prior de Schontal, ao relatar a maneira como “os demônios interrompiam sua lectio silenciosa, obrigando-o a ler em voz alta e privando-o, assim, da compreensão íntima”. Os monges cistercienses localizavam a mente no coração, e consideravam o ato de ler indispensável para influenciar o affectus cordis, pois a leitura individual estava ligada inextricavelmente à meditação. Não surpreende, portanto, que um monge do século XII – reconhecido como o autor de uma obra com um título significativo: De interiori domo – tenha aludido à meditação usando a metáfora da “leitura interior” (Chartier, R.; Cavallo, G., 1998, pp.193-194).


O novo hábito de ler em silêncio constituiu tanto um efeito como uma contribuição para a edificação desse espaço interior que passaria a ser o âmago das subjetividades ocidentais. Ler para si, silenciosamente e em solidão era uma atividade propícia para o indivíduo isolado dos outros e do mundo, apenas em contato com a sua própria interioridade – esse espaço que podia e devia ser sondado, interpretado, enriquecido e zelosamente cultivado. Antes, na Idade Média, no auge da leitura ritual e oral, nem os textos nem os autores possuíam a estabilidade necessária às práticas modernas de leitura, pois a palavra lida detinha certa aura sagrada e seus sentidos não eram objetiváveis de forma individual.


A partir dessa popularização da leitura silenciosa e privada, nos séculos posteriores, a literatura floresceu e começou a se converter em um campo fértil para a produção subjetiva. A profusão de relatos impressos que povoou o mundo oferecia aos leitores uma rica fonte de roteiros de subjetivação, a partir da qual podiam tecer identificações com as peripécias e as complexas interioridades dos personagens fictícios. Nesse sentido, como disse o crítico Harold Bloom a respeito da obra de Shakespeare: nós, sujeitos modernos, aprendemos a ser “humanos” com seus personagens, nos reconhecendo nesses modelos dominados por uma profundidade oculta bem no centro da sua “vida interior”. Uma interioridade obscura e impenetrável, que, no entanto, deve ser desvendada laboriosa e dolosamente.


Assim, a indagação do eu foi ganhando importância crescente na cultura ocidental, até se converter numa atividade frenética que instava a empreender fascinantes viagens auto-exploratórias. Muitas vezes, essas investigações e essas descobertas eram vertidas no papel. Como constatam Alain Corbin e Michelle Perrot na passagem da História da vida privada relativa a esta época de intenso “deciframento de si”, o “furor de escrever” tomou conta de homens, mulheres e crianças, imbuídos tanto pelo espírito iluminista de conhecimento racional como pelo ímpeto romântico de mergulho nos mistérios mais insondáveis da alma. A escrita de si tornou-se uma prática habitual no século XIX, dando à luz todo tipo de textos introspectivos nos quais a auto-reflexão se voltava para a sondagem da natureza contingente e singular de cada experiência individual.


Nos últimos três séculos da história ocidental, o âmbito privado da intimidade foi o cenário privilegiado para exercer esse cultivo do eu e da identidade. A esfera da privacidade, como se sabe, e uma invenção relativamente recente: só ganhou consistência na Europa dos séculos XVIII e XIX, quando um certo espaço de “refúgio” para o indivíduo e a família começou a ser criado no mundo burguês, almejando um território a salvo das exigências e dos perigos do meio público que começava a adquirir um tom cada vez mais ameaçador. Em seu livro O declínio do homem público, Richard Sennett analisa esse processo de esvaziamento e estigmatização da vida pública, e o surgimento concomitante das “tiranias da intimidade”. Uma dupla tendência que, de acordo com o sociólogo norte-americano, obedeceu a interesses políticos e econômicos específicos do capitalismo industrial.


Nesse contexto nasceu, também, a casa burguesa, fornecendo um ambiente íntimo e privado, descolado da atividade produtiva, que convidava à introspecção. Como mostra Witold Rybczynski ao reconstruir a história da casa, a idéia de intimidade não existia na Idade Média; a necessidade e a valorização de um certo espaço “íntimo” foram surgindo e se constituindo ao longo dos últimos três séculos. Foi, precisamente, com a paulatina aparição de um “mundo interno” do indivíduo, do eu e da família, que as pessoas começaram a considerar o lar como um contexto adequado para acolher essa vida interior que começava a florescer. Desse modo, as casas foram se tornando lugares privados. Funções específicas e fixas começaram a se definir para os diversos cômodos, aparecendo inclusive os cabinet, “um quarto mais íntimo para atividades privadas como a escrita” (Rybczynski, W. 1991, p.50). Outro historiador, Peter Gay, comenta a importância que começou a ganhar um “sonho de consumo” do século XIX: a possibilidade de se ter “um quarto próprio”, no qual o mundo interior do morador podia ficar à vontade e se expressar – dentre outras formas, através da escrita (Gay, 1992, pp.3744-436). Pois, em contraposição ao protocolo hostil da vida pública, o lar foi se transformando no território da autenticidade e da verdade, um refúgio onde era permitido ser “si mesmo”. A solidão, que tinha sido um estado raro na Idade Média, permitia o desdobramento de uma série de prazeres até então inéditos, a resguardo dos olhares intrusos e sob o império austero do decoro burguês. Nesses espaços impregnados de solidão, o sujeito moderno podia mergulhar em sua interioridade para se conhecer profundamente e narrar o relato do seu eu.



Desvendando a verdade interior do sujeito


Foram muitas as inovações históricas que surgiram nos alvores da Modernidade acompanhando essa fermentação interior da subjetividade. Uma delas é o nascimento da clínica médica, pois ela inaugurou um saber sobre o indivíduo e uma prática que focalizava a experiência de sofrimento de cada pessoa em particular – como assinalou Michel Foucault em seus estudos sobre o assunto. Reconhecendo a singularidade do pathos individual, as doenças começaram a serem compreendidas como encarnações no individuo; o foco, portanto, foi deslocado da doença para o doente. Em seguida, as doenças seriam pensadas e tratadas como desvios da normalidade, com suas raízes fincadas no interior dos corpos individuais. Assim, ao longo da era moderna foram desenvolvidas diversas tecnologias e todo um leque de saberes que legitimavam o mergulho no interior desses corpos, à procura da verdade escondida em sua intimidade obscura e visceral. A “técnica da confissão” é um desses dispositivos, amplamente disseminado pelos mais diversos âmbitos, envolvendo das formas jurídicas às práticas médicas e, sobretudo, à psicanálise.


Nesse contexto, a sexualidade surge como uma poderosa invenção da era moderna. Convém esclarecer que não se trata apenas da atividade sexual concreta, mas de uma certa verdade sobre o sujeito a ela ligada, uma verdade que é interiorizada e passa a significar algo fundamental sobre o que cada um é. Assim, a enigmática sexualidade interiorizada, objeto primordial da psicanálise, passou a constituir o âmago da identidade dos sujeitos. A sua medicalização, portanto, deslocou o foco do ato (sexual) para o ser (sexuado), convertendo aquilo que era um mero comportamento em uma essência internalizada e, conseqüentemente, uma característica constitutiva do sujeito. Assim, o homo psychologicus é um tipo de sujeito que aprendeu a organizar a sua experiência em torno de um eixo situado em sua complexa “vida interior”.



Deslocamentos na definição do eu


A hipótese central deste texto reza que, atualmente, estaríamos vivenciando certas transformações no modo pelo qual os indivíduos configuram a sua experiência subjetiva. Acompanhando as fortes mudanças que estão ocorrendo em todos os âmbitos – compassadas pela aceleração, a virtualização, a globalização e a digitalização – também estaríamos atravessando importantes mutações na definição da subjetividade contemporânea. Essas transformações revelam um certo declínio daquela esfera interior que costumava definir o homo psychologicus, em proveito de outras construções identitárias baseadas em novos regimes de constituição das imagens do corpo e do eu.


Respondendo à expansão das explicações biológicas do comportamento físico e da vida psíquica, hoje é possível perceber um paulatino desbalanceamento na organização subjetiva, uma passagem do mundo abissal dos sentimentos e do conflito inerente ao sentido trágico da vida (com seu denso tecido de regras interiorizadas, transgressões e desejos reprimidos; isto é, o arcabouço da psicanálise clássica), para uma preeminência da sensorialidade e da visibilidade instantâneas. Assim, tendências exibicionistas e performáticas alimentam os novos mecanismos de construção e consumo identitário, numa espetacularização do eu que visa à obtenção de um efeito: o reconhecimento nos olhos do outro e, sobretudo, o cobiçado fato de “ser visto”. Nesse contexto, portanto, evidencia-se o declínio da introspecção à moda antiga, aquela sondagem absolutamente privada nas profundezas enigmáticas do eu com objetivos de conhecimento de si.


Cada vez mais, a subjetividade é estruturada em torno do corpo, que se torna mais um objeto de design epidérmico do que um suporte para um “espaço interior” que deve ser auscultado por meio de complexas técnicas introspectivas. Na cultura da visibilidade e do espetáculo generalizado, os sentidos profundos e os fundamentos sucumbem diante do império da imagem e dos efeitos instantâneos.


Vários traços desse novo modelo subjetivo podem ser enunciados aqui, com o intuito de delinear um primeiro esboço do novo quadro, e com a certeza de que cada um desses fatores exige um exame aprofundado e cuidadoso. Impõem-se, assim, a lógica do impacto nervoso e efêmero, o imperativo do gozo constante e uma certa “ética do sucesso”, a fruição do consumo imediatista, o bem-estar tecnicamente controlado, a performance eficaz no curto prazo, o jogo das identidades descartáveis negociadas no mercado e uma certa gestão empresarial dos capitais vitais de cada indivíduo. Como diz o psicanalista Benilton Bezerra Jr., “se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior, ou como um choque entre aspirações e desejos reprimidos e as regras rígidas das convenções sociais, hoje o quadro é outro” (Bezerra Jr., 2002). No mundo contemporâneo, no qual vigora uma cultura das sensações e do espetáculo, “o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental que falha, muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza” (idem).


Pois o que é levado em conta para a definição de “identidade” dos sujeitos muda nas diversas épocas históricas. Agora, o comportamento sexual e a sua interiorização parecem pesar cada vez menos na hora de definir a “verdade íntima” de cada sujeito. Quem eu sou não passa mais por essas definições internas e ocultas, mas, de modo crescente, pelos sinais da exterioridade do corpo e da performance eminentemente visível. Ao invés de aprofundar e cultivar os sentimentos mais “íntimos” e “profundos”, o mundo atual estimula a experimentação epidérmica e convida a “colecionar sensações”, a mergulhar na experiência imediata para usufrui-la ao máximo.

Nesse contexto em que tudo é transformado em objeto de consumo e de prazer, o sofrimento se apresenta como um mero empecilho para o gozo. Assim, o sofrimento perde a sua antiga importância moral. Se a anestesia aboliu tecnologicamente essa instância fundamental da “ética do guerreiro”, a experiência da dor física foi esvaziada de sentido e de conteúdo moral; de modo semelhante, pareceria que algo equivalente deveria ocorrer com a dor psíquica, cada vez mais entendida como uma falha, como uma disfunção a ser eliminada. E os mais diversos frutos da tecnociência contemporânea – dos gadgets eletrônicos aos fármacos miraculosos – são oferecidos no mercado com a promessa de amortecer todas as dores e de acolchoar corpos e almas para evitar todo sofrimento. Isso é, ao menos, o que parecem propor as novas tendências da medicina e da psiquiatria baseadas no paradigma fisicalista, que foram emblematizadas pelo Prozac no início deste texto.


Na cultura do bem-estar e da ética do sucesso, o sofrimento é um elemento extremamente perturbador. De modo semelhante, o tédio é uma dimensão da existência que hoje se entende como uma disfunção a ser eliminada. Só a euforia constante é valida, numa era em que a fruição e o prazer tornaram-se obrigatórios e na qual vigoram as “tiranias da felicidade”. Em contraste com o núcleo da psicanálise, hoje a própria idéia de conflito é difícil de suportar.



As novas “escritas de si”: banalidade escancarada?


Em franca oposição ao que acontecia no século XIX com o mencionado “furor de escrever” e a profusão de práticas introspectivas – solitárias e muitas vezes secretas, extremamente íntimas e privadas – que visavam ao conhecimento interior e à paciente escrita de si, atualmente a “identidade” do sujeito se torna “externa”, como assinala Richard Sennett em seu livro A corrosão do caráter. O lema parece ser o seguinte: “você é o que você mostra de si”.


Nesse sentido, pode ser interessante insinuar aqui uma outra comparação entre práticas culturais características de duas épocas diferentes: por um lado, os weblogs e os e-mails – que hoje circulam profusamente pelos meandros digitais da Internet – e, por outro lado, os diários íntimos e as trocas epistolares que, plasmadas em objetos (obviamente analógicos) de tinta e papel, inflamaram as sensibilidades modernas. Ambos os pares de modalidades de expressão e comunicação pertencem a contextos socioculturais e políticos distintos, e remetem a subjetividades igualmente diferenciadas [1].


Se no século XIX tinha-se a sensação de que tudo existia para ser contado em um livro – para lembrar a célebre frase de Stéphane Mallarmé –, hoje a impressão é de que só acontece aquilo que é exibido em uma tela. As possibilidades inauguradas pelos meios eletrônicos como a Internet, que permitem a “qualquer um” ser visto, lido e ouvido por milhões de pessoas – mesmo que não se tenha nada específico ou valioso para dizer – talvez esteja dando conta dessa falta de sentido que marca as experiências subjetivas contemporâneas: uma carência que consegue dotar de valor ao mero fato de se exibir, de ser visível mesmo que seja na fugacidade de um instante de luz virtual.


Nesse novo quadro, os “quinze minutos de fama” previstos por Andy Warhol como um direito de qualquer mortal na era midiática, exprimem uma intuição visionária, porém ainda atrelada a outro paradigma: aquele dominado pela televisão e pelos meios de comunicação de massa no esquema broadcasting. É possível arriscar dizer, então, que as redes informáticas estariam cumprindo – do seu jeito e, talvez, de um modo mais radical do que aquele que Warhol jamais poderia ter previsto – essa promessa que a TV não pôde satisfazer. No entanto, o resultado de tamanha conquista pode ser desapontador, pois tanto os weblogs como as webcams e outras modalidades recentes de “shows da vida” ou reality shows costumam expor cenas da banalidade mais prosaica.

O forte interesse que essas histórias pequenas conseguem despertar hoje em dia, o raro fascínio desses micro-relatos vivenciais expostos nas telas que iluminam (e ofuscam) o mundo contemporâneo, talvez seja a outra face de um fenômeno bem debatido em anos recentes: a decadência dos grandes relatos que organizavam e davam sentido à vida moderna, tanto em nível coletivo quanto no individual, acompanhando o declínio da interioridade como centro definidor da vida subjetiva.



Breve retorno à interrogação inicial


As páginas precedentes tentaram sugerir – valendo-se de comparações exemplares, como as dos pares psicanálise/Prozac e diários-íntimos/weblogs – que hoje estamos vivenciando uma certa mutação na configuração das subjetividades. Essa transição, atualmente em pleno andamento, expressaria uma passagem gradativa do homo psico-lógico para o homo tecno-lógico. Pois as novas práticas culturais parecem perfeitamente afinadas com a cultura contemporânea; uma cultura apoiada em um arsenal tecnocientífico que se sustenta em sua própria eficácia e, por isso mesmo, desdenha toda pergunta pelos fundamentos que a constituem. Nesse contexto, a construção de subjetividades epidérmicas e orientadas para a visibilidade parece desprezar toda pergunta pelo sentido, focalizando apenas os efeitos que são capazes de produzir nos olhos alheios.


Após o percurso textual deste artigo, portanto, a pergunta primeira ressurge aqui: nesses novos corpos que estão sendo construídos na sociedade contemporânea – “corpos superexcitados”, como diria Paul Virilio; corpos ávidos, ansiosos, submetidos ao imperativo da reciclagem visando à fruição constante e ao sucesso eminentemente visíveis – ainda há espaço para aquela interioridade que embasava as subjetividades modernas? Ou, ao contrário, urge pensar quais são os modelos subjetivos que estão emergindo e crescendo nesta nova formação histórica? A pergunta está longe de ser gratuita e envolve uma ampla série de implicações éticas e políticas.


* Paula Sibilia é doutoranda da linha de Sistemas de Interpretação do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.

sibilia@ig.com.br


Notas

[1] É o que pretende mostrar o meu projeto de Doutorado, atualmente em desenvolvimento na ECO/UFRJ, intitulado Cartas e Diários. Do manuscrito à Internet: reconfigurações da intimidade e da privacidade.


Bibliografia

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• VIRILIO, Paul. Do super-homem ao homem superexcitado. A Arte do Motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

• WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999.


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Respostas para as condições humanas - Entrevista com Maria Paula Sibilia

http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7536&cod_canal=41


“Respostas para a condição humana atualmente estão sendo discutidas e respondidas pelas ciências, particularmente pelas neurociências” disse a antropóloga Paula Sibilia, em entrevista à IHU On-Line. Sibilia é argentina, graduada em Antropologia e em Ciências da Comunicação pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e mestre em Informação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é doutoranda em Comunicação e Cultura na UFRJ. É professora no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

A pesquisadora é autora de O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, também publicado em espanhol pela editora Fondo de Cultura Econômica, sob o título El hombre postorgánico. De Sibilia reproduzimos a entrevista O Carnaval da beleza globalizada, na 90ª edição da IHU On-Line, de 1º de março de 2004. Na edição nº 145, 13 de junho de 2005, ela concedeu a entrevista intitulada Novas escritas de si: entre o absolutamente público e o extremamente privado. Recentemente, no Congresso Internacional Neurociências e a Sociedade Contemporânea, proferiu a palestra A desmaterialização do corpo: do dualismo analógico ao digital.


IHU On-Line - Como se relacionam a neurociência e a comunicação?

Maria Paula Sibilia - Nos últimos anos, tanto as fabulosas descobertas como as ambiciosas pesquisas das neurociências têm invadido aquilo que chamamos de “opinião pública”. É muito intensa a divulgação midiática desse tipo de discursos cientificistas que procuram explicar a condição humana, e que estão adquirindo um estatuto de verdade absoluta entre nós, isto é, uma capacidade de deslegitimar todas as outras narrativas sobre a vida e o homem. Para ilustrar isso, basta mencionar um exemplo bastante sintomático: o autor do livro O Mundo de Sofia , que há alguns anos se tornou uma espécie de “best-seller de divulgação filosófica” em todo o mundo, Jostein Gaarder, confessou ter deixado de ler textos de filosofia por acreditar que as questões fundamentais sobre a condição humana atualmente estão sendo discutidas e respondidas pelas ciências, particularmente pelas neurociências.


Eu acredito que os pesquisadores da Comunicação devemos observar com muita atenção este fenômeno. Em primeiro lugar, é preciso manter uma visão crítica e uma atitude “desconfiada” com relação aos saberes que, nas diversas épocas e contextos históricos, procuram decifrar e enunciar a verdade sobre a condição humana. Pois, como sabemos, junto com todas as vantagens que os conhecimentos médicos e as diversas técnicas podem trazer, costumam vir também certas crenças e todo um conjunto de “mitos” que acabam restringindo as nossas potências humanas: a nossa capacidade de pensar e agir no mundo. Daí a importância desse estudo crítico: é preciso exercer não apenas uma constante indagação filosófica, capaz de questionar a validade dessas crenças, mas também devemos lançar sobre elas um olhar antropológico, de estranhamento e “desnaturalização” com relação a tudo aquilo que vai cristalizando em nosso senso comum como verdades inquestionáveis — e, portanto, sempre reducionistas e limitadoras do acionar humano.


IHU On-Line - Poderia falar um pouco da sua palestra no Congresso Internacional Neurociências e a Sociedade Contemporânea A desmaterialização do corpo: do dualismo analógico ao digital?

Maria Paula Sibilia - Nessa ocasião, eu apresentei um trabalho que se situa nesse cruzamento entre a Comunicação e a Antropologia. Trata-se de uma pesquisa sobre a divulgação midiática de certas descobertas das novas “ciências da vida”. Nesse conjunto de saberes não constam apenas as neurociências, mas também outras áreas de conhecimento igualmente privilegiadas hoje em dia, como as biotecnologias e a genética. Como disse antes, creio que a forma como são divulgadas todas essas novidades nos meios de comunicação impregna nosso imaginário, e está afetando fortemente as nossas visões do mundo, do homem, da natureza e da vida.

Assim, toda uma série de novas metáforas, imagens e crenças associadas à mais nova tecnociência (e emanadas profusamente pela mídia) repercutem sobre as nossas definições da condição humana, renovando-as constantemente, conservando certos valores e certas idéias tradicionais. Entre elas, torna sempre a aparecer o famoso dualismo dito “cartesiano”; isto é, uma separação entre dois tipos de componentes na definição do ser humano: ingredientes materiais, por um lado, e imateriais, por outro. Persiste, também, a tendência a privilegiar estes últimos componentes em detrimento dos primeiros.


Contudo, à luz destes novos saberes tão influentes da nossa atualidade, aquela visão clássica da condição humana é renovada: agora, a “essência” do sujeito parece residir na sua informação — seja genética ou neuronial. Trata-se de dados que fazem de cada sujeito um indivíduo singular. Se observarmos o grande sonho que norteia tanto as neurociências como a engenharia genética, veremos que essas “novas ciências da vida” procuram desvendar os códigos, os sinais e os circuitos pelos quais trafega a informação vital dos seres humanos. O objetivo comum a ambos os tipos de saber consiste em acessar essa verdade (traduzida em informação digital ou digitalizável) para eventualmente poder manipulá-la à vontade, corrigindo eventuais “defeitos” e efetuando diversos “ajustes”.


Analógico e digital


Por que digo que esta seria uma reciclagem do dualismo clássico, que estaria passando de sua tradicional versão analógica para a digital? Porque esses dados vitais que definem a identidade de cada indivíduo — segundo estes novos discursos tecnocientíficos — permanecem alojados em seu mais íntimo substrato biológico (células, moléculas, carne); no entanto, descobrimos que as entidades encarregadas de hospedar essa valiosa informação são quase etéreas: os circuitos cerebrais e o código genético. Como resultado de uma operação metafórica e conceitual — ou seja, de um trabalho histórico — a informação vital de cada indivíduo parece ter sido, de algum modo, “desmaterializada”. É assim como a subjetividade torna a repousar sobre bases imateriais, pois agora é a própria matéria orgânica que se “desmaterializa”: são as nossas células e as “informações orgânicas” nelas contidas, que ganham um estatuto imaterializado.


Se concordarmos com este diagnóstico, então não podemos ignorar os enormes impactos destas transformações no pensamento sobre a condição humana. Vejamos, por exemplo: se o ser humano é uma criatura fundamentalmente cerebral e geneticamente determinada — visto que é na informação contida no seu cérebro e no seu DNA onde reside a própria identidade — então o resto do seu corpo não passaria de um mero ornamento desse núcleo identitário: seria algo secundário, não prioritário. É por isso que os corpos atuais podem ser modificados — inclusive radicalmente — sem que tais mudanças coloquem em risco as raízes individuais de cada sujeito.


O corpo


No entanto, embora se trate de uma peça secundária, não há dúvidas quanto à importância do corpo na cultura contemporânea, pelo menos em um aspecto: o corpo se ergue como uma imagem que deve ter uma boa aparência. Essa ênfase na visibilidade complementa uma outra tendência extremamente importante no mundo contemporâneo: um certo apagamento da interioridade psicológica ou da “vida interior”, isto é, daquele eixo em torno do qual as subjetividades modernas se construíam. Podemos dizer que esse terreno sempre obscuro e opaco, igualmente gasoso ou “imaterial”, localizado “dentro” de cada sujeito, possuía características analógicas, pois seus mistérios resistiam às sondagens técnicas, demandando complexos métodos introspectivos e hermenêuticos para serem compreendidos (da psicanálise ao diário íntimo, passando pelas diversas técnicas da confissão). Cada vez mais, porém, o núcleo identitário de cada sujeito parece se deslocar rumo a outras entidades, mais aparentadas com o universo digital e compatíveis com toda uma aparelhagem técnica que procura decifrá-las.


Não estou fazendo referência apenas aos circuitos cerebrais e à programação genética de cada um de nós — que são claramente compatíveis com os aparelhos de ressonância magnética e com os seqüenciadores de DNA, por exemplo — mas também à nossa imagem corporal visível. O corpo humano parece estar atravessando um processo de bidimensionalização e virtualização; de algum modo, ele também se “desmaterializa” neste movimento histórico. Cada vez mais, entre nós, o corpo orgânico e material vai se tornando um corpo-imagem, que pode (e talvez até mesmo deva) ser redesenhado ou “editado” como se fosse uma imagem digital, com ajuda dos diversos produtos e serviços de reformatação oferecidos no mercado — musculação, cosméticos, alimentos dietéticos, cirurgias plásticas etc.


Esse seria, resumindo bastante, o miolo da minha palestra proferida no Congresso Internacional de Neurociências, sobre a “desmaterialização do corpo” e a passagem do dualismo analógico para o digital na definição da condição humana no mundo contemporâneo.


IHU On-Line - Pode-se dizer que o homem se tornou obsoleto? Como isso aconteceu? Quais fatores e processos contribuíram para isso?

Maria Paula Sibilia - Em vez de dizer simplesmente que “o homem se tornou obsoleto”, eu diria que as atuais verdades tecnocientíficas — bem como as condições sociopolíticas, econômicas e culturais da nossa época — têm tornado “obsoleto” um certo tipo de homem, uma certa definição do que é ser humano. Acompanhando as fortes transformações dos últimos anos em todas essas áreas, os tipos de corpos e subjetividades que serviram aos interesses do capitalismo industrial do século XIX e da primeira metade do século XX, por exemplo, hoje estariam tornando-se “obsoletos”. Por quê? Porque eles não são mais “úteis” aos interesses do capitalismo contemporâneo. Envelheceram, tornaram-se antiquados e obsoletos, não mais adequados às demandas do mundo atual, pois aquele regime histórico propulsado pelo capitalismo industrial demandava grandes levas de sujeitos “disciplinados”, corpos “dóceis e úteis” especialmente treinados para saciar as suas engrenagens e subjetividades compatíveis com toda aquela maquinaria. Já a nossa sociedade parece solicitar outros tipos de corpos e outros modos de ser. O capitalismo contemporâneo não precisa de sujeitos disciplinados à moda antiga; ao contrário, requer corpos ávidos, ansiosos, criativos e flexíveis. De certo ponto de vista, porém, poderíamos dizer que estas novas configurações corporais também são “dóceis e úteis”, mas, em outros sentidos, elas estão respondendo a outro projeto histórico bastante diferente.


IHU On-Line - Nesta perspectiva de que o homem se tornou obsoleto, quem se beneficia com isso?

Maria Paula Sibilia - Em meu livro O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais, publicado em 2002 como uma versão da minha pesquisa de mestrado em Comunicação (realizada na UFF), procurei analisar essa “obsolescência do humano” como um processo associado a uma série de discursos, imagens e metáforas que se cristalizam em nosso senso comum, como verdades naturalizadas entre nós. A minha intenção era, justamente, desnaturalizar essas novas verdades, assinalando as suas raízes históricas e inventadas, mostrando de que modo elas respondem a um determinado projeto sociopolítico, econômico e cultural. De acordo com esse regime contemporâneo, a carne que conforma os nossos corpos vive sob a ameaça da condenação à “obsolescência”: ela recebe a grave acusação de ser “impura” por ser finita, perecível e demasiadamente orgânica. É por causa disso que nossos corpos “obsoletos” devem ser cuidadosamente submetidos ao imperativo do upgrade constante, da reciclagem e da atualização permanentes, porque as nossas configurações corporais servem a certos interesses históricos que hoje estão se tornando hegemônicos, e que requerem desse tipo de corpos renovadamente “dóceis e úteis” para poder funcionar adequadamente. São corpos que precisam ser reciclados e renovados constantemente, recorrendo para isso aos produtos e serviços oferecidos pela tecnociência (em sua aliança tácita com o mercado e a mídia); isto é, corpos submetidos às tiranias do upgrade constante.


IHU On-Line - Nosso futuro nestas perspectivas seria parecido com o filme Matrix? Ou Gattaca?

Maria Paula Sibilia - Como costuma ocorrer com as melhores obras de ficção-científica, eu creio que esses dois filmes tiveram a capacidade de mostrar certas tendências do nosso presente, mais que do nosso futuro. Ambos os filmes problematizam certos fascínios e certos temores que envolvem os poderes mais obscuros de nossos saberes, isto é, das nossas verdades tecnocientíficas. Assim como Gattaca questiona o reducionismo do “determinismo genético” onipresente em nossa cultura, Matrix expõe as angústias da “virtualização” e das tendências desmaterializantes ligadas à parafernália das telecomunicações.


IHU On-Line - No mundo que é um caos social, político e ambiental, como pode a espécie humana sobreviver nos próximos 100 anos?

Maria Paula Sibilia - Uma resposta possível a essa pergunta é a seguinte: como sempre o fizemos... pois o mundo sempre foi “um caos social, político e ambiental”. No entanto, também é preciso notar que nós somos sujeitos históricos, afetados pelas circunstâncias da contemporaneidade, portanto devemos inventar as nossas próprias pegadas e as nossas próprias estratégias, pois as circunstâncias mudam e, com elas, também mudam as nossas verdades e os nossos projetos.


IHU On-Line - Para onde vamos? Para onde levamos nosso corpo?

Maria Paula Sibilia - Infelizmente, tampouco tenho condições de responder a essa pergunta... Ou talvez devesse dizer: felizmente não tenho essas respostas! As questões aqui discutidas fazem parte de um presente vivo, que está sendo criado por todos nós, e as respostas também estão sendo inventadas. Só destacaria a necessidade de questionarmos as verdades cristalizadas como “inquestionáveis” e as realidades tidas como “imutáveis”, pois eu acredito que elas sempre deveriam ser desafiadas, questionadas, recriadas e reinventadas. Uma tarefa que depende de todos nós, que deve ser realizada lançando-se mão das ferramentas que nos fornece o pensamento, a filosofia, as ciências e também as artes. Portanto, na hora de responder “para onde vamos?”, reitero apenas que não há nada de “inevitável” ou de “irreversível” nesse percurso. Cabe a nós a tarefa criativa e política de definir o que somos, o que estamos nos tornando e o que gostaríamos de nos tornar.


(Fonte: www.unisinos.br/ihu)

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